terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Milan Kundera conversa com Philip Roth



um romance não afirma nada; ele busca questões. não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. a burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. a sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. quando dom quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. é esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subsequente do romance. o romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. nessa atitude há sabedoria e tolerância. num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. o mundo totalitário - seja ele baseado em marx, no islã ou em qualquer outra coisa - é um mundo de respostas e não de perguntas. nesse mundo o romance não tem lugar. seja como for, creio que em todo mundo as pessoas hoje preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a toda a tagarelice insensata das certezas humanas.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Péter Kántor



do que se necessita para a felicidade? 

posto assim,
não muito:
dois seres,
uma garrafa de vinho,
queijo do país,
sal, pão,
um quarto,
uma janela e uma porta,
lá fora, que chova,
chuva de longos fios,
e claro, cigarros.
mas, ainda assim, de muitas noites
apenas uma ou duas vezes resulta, 
como os grandes poemas de grandes poetas.
o mais é preparatório,
ou epílogo,
dor de cabeça,
ou espasmo de riso,
não se pode, mas deve-se,
é demasiado, mas insuficiente.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

16.


disparo

ontem, nosso beijo foi roubado
por um clic fotográfico
eu e você, no saguão de um teatro
a espera do show
de um velho artista de vanguarda
eu tomava uma coca-cola 
pela cintura, você me puxava pra perto

soube que me achou mais bonita do que de costume
(meu turbante xadrez repuxava-me os olhos)
saiba que gostei de você mais do que nunca
(terá percebido?)

apenas na ponta de um dos pés,
eu quase flutuava
e o enlace dos seus dedos nas minhas costas
era o que me segurava
no enquadramento do desconhecido
terá ele captado o momento decisivo?
e mesmo que nunca se veja o retrato
(se é que de fato o disparo foi feito)
me encanta imaginar que somos um nós tão fotogênico

Adélia Prado


com licença poética

quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
não sou tão feia que não possa casar,
acho o rio de janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
mas o que sinto escrevo. cumpro a sina.
inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
mulher é desdobrável. eu sou.

domingo, 2 de novembro de 2014

Carlos Drummond de Andrade



mundo grande

não, meu coração não é maior que o mundo.
é muito menor.
nele não cabem nem as minhas dores.
por isso gosto tanto de me contar.
por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

sim, meu coração é muito pequeno.
só agora vejo que nele não cabem os homens.
os homens estão cá fora, estão na rua.
a rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
mas também a rua não cabe todos os homens.
a rua é menor que o mundo.
o mundo é grande.

tu sabes como é grande o mundo.
conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

fecha os olhos e esquece.
escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
renascerão as cidades submersas?
os homens submersos – voltarão?

meu coração não sabe.
estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
nunca escutei voz de gente.
em verdade sou muito pobre.

outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

meus amigos foram às ilhas.
ilhas perdem o homem.
entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

então, meu coração também pode crescer.
entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– ó vida futura! Nós te criaremos.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Jorge Luis Borges



the unending gift

um pintor nos prometeu um quadro.
agora, em new england, sei que morreu. senti,
como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho.
pensei no homem e no quadro perdidos.
(só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
uma coisa a mais, uma das vaidades ou
hábitos da casa; agora é ilimitada,
incessante, capaz de qualquer forma 
qualquer cor e a ninguém vinculada.
existe de algum modo. viverá e crescerá como
uma música e estará comigo até o fim.
obrigado, Jorge Larco.
(também os homens podem prometer,
porque na promessa há algo imortal.)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Andrei Tarkovsky



esculpindo o tempo

e estranho que, em arte, o rótulo de "artificial" seja aplicado ao que pertence inquestionavelmente à esfera da nossa percepção comum e cotidiana da realidade. isto se explica pelo fato de a vida ser muito mais poética do que a maneira como às vezes é representada pelos partidários mais convictos do naturalismo. muitas coisas, afinal, ficam em nossos corações e pensamentos como sugestões não concretizadas. em vez de tentar captar essas nuances, a maior parte dos filmes despretensiosos e "realistas" não só as ignora, como faz questão de usar imagens muito nítidas e explícitas, o que no máximo consegue tornar o filme forçado e artificial. no que me diz respeito, só admito um cinema que esteja o mais próximo possível da vida — ainda que, em certos momentos, sejamos incapazes de ver o quanto a vida é realmente bela.

...

amo muito o cinema. eu mesmo ainda não sei muita coisa: se, por exemplo, meu trabalho corresponderá exatamente à concepção que tenho, ao sistema de hipóteses com que me defronto atualmente. além do mais, as tentações são muitas: a tentação dos lugares-comuns, das idéias artísticas dos outros. em geral, na verdade, é tão fácil rodar uma cena de modo requintado, de efeito, para arrancar aplausos...  mas basta voltar-se nessa direção e você está perdido. por meio do cinema, é necessário situar os problemas mais complexos do mundo moderno no nível dos grandes problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. é preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longo do qual deve mover-se a arte do cinema.

...

a criação artística, afinal, não está sujeita a leis absolutas e válidas para todas as épocas; uma vez que está ligada ao objetivo mais geral do conhecimento do mundo, ela tem um número infinito de facetas e de vínculos que ligam o homem a sua atividade vital; e, mesmo que seja interminável o caminho que leva ao conhecimento, nenhum dos passos que aproximam o homem de uma compreensão plena do significado da sua existência pode ser desprezado como pequeno demais.

...

quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida.

...

o poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança, pois as suas impressões do mundo são imediatas, por mais profundas que sejam as suas ideias sobre o mundo. é claro que, ao falarmos de uma criança, também podemos dizer que ela é um filósofo; isso, porém, só pode ser afirmado num sentido bastante relativo. E a arte se esvai diante de conceitos filosóficos. o poeta não usa "descrições" do mundo; ele próprio participa da sua criação.

...

o gênio, afinal, não se revela na perfeição absoluta de uma obra, mas sim na absoluta felicidade a si próprio, no compromisso com sua própria paixão. o anseio apaixonado do artista de encontrar a verdade, de conhecer o mundo e a si próprio dentro desse mundo, confere um significado especial até mesmo aos trechos um tanto obscuros de suas obras, ou, como s costuma dizer, 'menos bem sucedidos'.

...

pois a criação artística não é apenas uma maneira de articular informações que existem objetivamente, cuja expressão requer apenas certa capacidade profissional. em última análise, ela é a própria forma de existência do artista, o seu único meio de expressão, exclusivamente seu. e fica claro, então que não se pode aplicar esta palavra flácida 'procura', a uma vitória sobre o silêncio, que exige um esforço incansável e sobre-humano.

...

se lançarmos um olhar, mesmo que superficial, para o passado, para a vida que ficou pra trás, sem nem mesmo recordar seus momentos mais significativos, iremos nos surpreender continuamente com a singularidade dos acontecimentos de que participamos, com a individualidade absoluta dos personagens com os quais nos relacionamos. esta singularidade é como a nota dominante de cada momento da existência; em cada momento da vida, o princípio vital é único em si. o artista, portanto, tenta apreender esse princípio e torná-lo concreto, renovando-o cada vez; a cada nova tentativa, mesmo que em vão, ele tenta obter uma imagem completa da verdade da existência humana. a qualidade da beleza encontra-se na verdade da vida, que o artista assimila e dá a conhecer de acordo com sua visão pessoal.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

15.



não é pressa, é saudade – a carta dele pra ela

Brasília, 12 de abril de 2015. 

Meu bem,

a distância ainda não me ensinou a te chamar de outro jeito. Te conheço há apenas dois meses. Na verdade, não estivemos juntos mais do que dez... doze dias e já não existem palavras que definam melhor o que tu és para mim: meu bem, meu amor, mi cariño. 

Fevereiro está longe. Março me acordou com saudades todos os dias de manhã. Começou abril e eu não me esqueço o encaixe perfeito do teu beijo. Não esqueço os rodopios e gargalhadas que nos acompanhavam a cada bloquinho de carnaval. A purpurina que saía dos nossos corpos para os seus lençóis. O nosso baile particular, em que canção nenhuma era mais alta do que os segredos que eu sussurrava em seu ouvido. 

A sua cidade me entrando pelos poros junto contigo. Aquele cenário próprio, composto de um bougainville roxo vivo, beijos de beija-flor e visitas de zangões, que assistíamos todos os dias da janela da sua casa. A ladeira em que você apostava corrida com sua antiga amiga e na qual, espertamente, você me propôs o mesmo desafio. E que, é claro, eu perdi. Você já tinha um fôlego de toda uma vida ali. A padaria onde seu pai te levava para comer aquele misto quente (com tomate, por favor) e o chocolate bem forte. O banquinho onde deu o seu primeiro beijo (e onde e eu te enchi de muitos outros). A maneira como você segurou o meu braço, cheio de um carinho não mais passageiro, e me contou que à noite, as coisas mudam de lugar. 

Faço essa proposta cheio de medo. Sei que você se lembra de muito, mas não sei o quanto você esquece. E não sei se o que esquece já é o suficiente para deixar tudo para lá. Sem contar que memória é alívio apenas presumido. Não sei se dela nasce também a vontade de me rever. E mesmo que queiras, fica a dúvida: será que minha cidade vai nos receber tão bem quanto a sua? Mas para mim, o desafio é novamente irresistível. Eu quero ver você aqui. Quero mostrar que o meu cotidiano também é cheio de coisas infinitamente grandes e de coisas infinitamente pequenas.

Pense e repense no meu convite com o mesmo carinho que embalou nosso carnaval. Saiba que não espero. Mas leve a certeza de que tenho esperança. O radical é o mesmo. O que muda é a forma como se encara a vida. O primeiro termo sugere estagnação. O segundo é uma história que segue. O futuro saberá o que fazer da gente. Não ache que estou sendo precipitado. Não é pressa. É só saudade.

um beijo quente do teu pierrô.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

14.



a despedida

e naquele cenário tão habitual à história dos dois, se deu a despedida. ela, lhe fez uma surpresa, agiu como de costume, coisa que não fazia desde que haviam se separado. com aquele carinho que não era mais passageiro, o olhou timidamente e disse "é para você", em resposta ao livro que ele recolhia da mesa do café e estendia em sua direção.

a criança havia pedido que segurassem a porta do banheiro, não queria trancar, pois temia ficar presa mais uma vez. a moça se dispôs a segurá-la, desculpa para fugir de tudo o que era passado e teimava em flutuar naquele ambiente tão familiar. ela, em pé na porta do banheiro, com as mãos repousando desconfortavelmente sobre a saia estampada. aquela mesma saia que já tinha se tornado tão banal para ele, mas que agora, voltava a vestir a moça de maneira tão graciosa. ela, ora o observava, ora voltava a olhar para aquela foto em preto e branco que sempre lhe chamara atenção. ele, ainda na mesa, com a antiga camisa xadrez, da qual ela já gostou tanto, mas que agora lhe remetia a uma lembrança dolorosa. 

sentado como sempre, com as pernas cruzadas, passava as páginas lentamente. percebia que ela ainda sabia o que ele gostava de ler. descobriu a dedicatória. lembrou que ela nunca dava um livro sem escrever algumas palavras na contracapa. leu e a olhou com ternura. enxugou as lágrimas discretas que se derramaram no canto dos olhos. não esperava que ainda fosse possível se emocionar com a doçura daquela moça de olhos estrangeiros, cientes de tudo. pelo menos, não por agora. a distância que havia se imposto entre os dois no último ano, cessou por um átimo. mas logo cresceria para milhares de quilômetros.  

um sentimento próprio aos dois, se fez alheio às convenções de tempo, sem se saber localizar no passado ou no presente. era isso o que existia naquele momento. como algo de tanta densidade podia ocorrer enquanto as outras pessoas apenas tomavam seus cafés, trabalhavam, liam ou, simplesmente, conversavam sobre trivialidades? como podia acontecer em um dia em que nada escapava da rotina? será que apenas os dois percebiam, naquele instante, o mistério que pairava sobre as relações humanas? mais alguém era capaz de testemunhar o que viviam?   

as mágoas existem e impedem o que estaria por vir, tudo aquilo que um dia já haviam imaginado juntos. mas não apagam tudo de bonito que souberam construir. a vida tem dessas coisas: aquilo que há de mais belo também pode conter a tristeza mais brutal. mas não é preciso dar nome a tudo, nem encontrar uma taxonomia precisa para definir cada história que se tem. 

a criança saiu do banheiro. a moça, aliviada, sentiu que o tempo voltava a ter pressa. o estranho sentimento que os rondou era só a vida distraída que perdoava o passado e se colocava pronta para a renovação. a fala da criança ocupou o silêncio. ela requisitava o pai para algum programa divertido. se despediu feliz da moça, agradeceu a tarde singela, solicitando, ao seu modo infantil, que elas pudessem se encontrar novamente. a moça garantiu que sim. cada um foi para o seu lado, como se fosse mais um dia comum.e a moça já sabia, as despedidas reais eram assim: um ato cotidiano e banal, despido da intensidade do drama, como um bonito e melancólico entardecer.

e eles, enfim, puderam se separar. 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Gyula Krúdy



o companheiro de viagem

desejava tomar o café da manhã numa toalha azul cheirando a leite, como em criança na casa dos pais: troca-se a toalha de mesa todo domingo, os rostos estão recém-lavados, os cabelos são penteados ainda molhados, as camisas alvejadas, as feições alegres em volta da mesa familiar. ali, mesmo a aguardente e o rum têm outro aroma. A pálinka* que a família entorna em jejum não faz mal. a galinha acaba de pôr o ovo fresco, a manteiga gordurosa sorri como uma jovem obesa entre folhas de parreira, os sapatos brilham, o pensamento carregado da noite se alça da roupa de cama com a brisa fresca da manhã, a empregada corre sobre pés de bailarina na saia engomada de véspera; nas ruas cobertas pela geada matinal, mesmo as carroças de esterco exalam um cheiro diferente, de tarde o estertor dos doentes graves silencia nas casas vizinhas, as verduras frescas da feira, a cabeça vermelha dos galos, o rosado das carnes balançam nas cestas de vime, a torre da cidade parece ter sido lavada com esponja durante a madrugada, o chapim de colete colorido saltita alegre no morangueiro congelado como a vida distraída que perdoa o passado e se renova...

* aguardente de pêssego, equivalente à cachaça. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Wislawa Szymborska



sob uma estrela pequenina

me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
me desculpe a necessidade se ainda me engano.
que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
me desculpem os que chamam das profundezas pelo disco de minuetos.
me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
e você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
verdade, não me dê excessiva atenção.
seriedade, me mostre magnanimidade.
ature , segredo do ser, se eu puxo os fios de suas vestes.
não me acuse, alma, por tê-la raramente.
me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Ana Merino



mi intimidad es pequeña

mi intimidad es pequeña
cabe in mi boca
y se desliza por entre los dientes;
 
si la descubro fingiendo ser saliva
me la trago,
no quiero verla ajena en las palabras
ni perderla con un beso. 

sábado, 23 de agosto de 2014

James Wood



como funciona a ficção 

em 28 de março de 1941, Virginia Woolf encheu os bolsos de pedras e entrou no rio Ouse. o marido, Leonard Woolf, era obsessivamente meticuloso, e manteve na vida adulta um diário no qual registrava todos os dias as refeições e a quilometragem do carro. aparentemente, não houve nenhuma diferença no dia em que sua mulher se suicidou: ele registrou a quilometragem do carro. mas, diz sua biógrafa Victoria Glendinning, a página dessa data está borrada, com "uma mancha amarela pardacenta que foi esfregada ou enxugada. Podia ser chá, café ou lágrimas. é o único borrão em todos os anos de um diário impecável". 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Virginia Woolf



juntos e à parte

de tudo o que existe, nada é tão estranho como as relações humanas, pensou ela, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade, pois o desagrado que ela havia sentido já era agora quase amor intenso e arrebatado, mas, tão logo essa palavra "amor" lhe ocorreu, ela a rejeitou, pensando novamente quão obscura era a mente, com suas pouquíssimas palavras para todas essas percepções surpreendentes, essas alternâncias de prazer e dor. Pois que nome se dava àquilo? Era o que ela agora sentia, o retraimento da afeição humana, o desaparecimento de Serle e a necessidade instantânea sob a qual se achavam ambos de encobrir o que era tão desolador, tão degradante para a natureza humana, que todos tentavam enterrá-lo em recato para eximir-se à visão - esse retraimento, essa violação da confiança e, procurando uma fórmula decorosa, reconhecida e aceita, de funeral, ela disse:

"Por mais que façam, não conseguirão, é claro, estragar Canterbury."

Ele sorrriu; aceitou a frase; cruzou as pernas ao contrário. Ela fez seu papel; ele, o dele. E assim as coisas terminaram. Veio logo sobre ambos essa paralisante cessação de sentimento, quando nada irrompe da mente, quando suas paredes parecem de ardósia; quando o vazio quase dói, e os olhos petrificados e fixos veem o mesmo ponto - uma forma, um balde de carvão - com uma exatidão que é aterradora, pois nenhuma emoção, nenhuma ideia, nenhuma impressão de qualquer tipo surge para alterá-la, modificá-la, embelezá-la, uma vez que as fontes do sentir parecem lacradas e enrijecendo-se a mente, enrijece-se também o corpo; fortemente estatuesco, sem deixar que mr. Serle ou miss Anning pudessem se mexer ou falar, e sentindo-se eles como se um encantador os tivesse salvo, e a fonte fez a vida correr por todas as veias, quando Mira Cartwright, dando um malicioso tapinha no ombro de mr. Serle, disse:

"Eu o vi no Meistersinger, passando bem na minha frente. Seu malvado", disse miss Cartwright, "não merece que eu volte a lhe dirigir a palavra." 

E eles puderam separar-se. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

13.



raízes 

tenho um avô japonês.
quando uma de suas filhas 
[temporãs do casamento com a esposa brasileira] 
fala um alegre "eu te amo, pai", 
ele dá um sorriso doce e tímido 
[daquele em que a boca rasga pouco, mas os olhos apertam bastante]
e responde baixinho:
igualmente.

- eu vim daí. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

12.



ebulição

e, nestes dias,
fomos apenas vapores
que embaçavam a janela
e  sequer permitiam-me ver
a expressão do teu rosto
enquanto partia

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Jan Gehl



cidades para pessoas 

como já mencionado, as atividades de ver e ouvir são as principais categorias de contato social. são também as formas de contato que mais podem ser influenciadas pelo planejamento urbano. os convites basicamente determinam se os espaços da cidade têm a vitalidade que favorece o encontro entre as pessoas. a questão é importante porque esses contatos passivos – de ver e ouvir – funcionam como pano de fundo e como trampolim para as outras formas de contato. através da observação, do ouvir e experienciar os outros, juntamos informações sobre as pessoas e a sociedade em torno de nós. é um princípio.

experienciar a vida na cidade é também um entretenimento estimulante e divertido. as cenas mudam a cada minuto. há muito a se ver: comportamentos, rostos, cores e sentimentos. e essas experiências estão relacionadas a um dos mais importantes temas da vida humana: as pessoas.

essa declaração – "o homem é a maior alegria do homem" – vem de Hávamál, um poema épico islandês de mais de mil anos que, sucintamente, descreve o encanto e interesse humano por outras pessoas. nada é mais importante ou fascinante.” 

Jón Bong-gón


lirismo

chovia
até o vento preso na árvore
se dilacerava encharcado

agarrado ao meu braço - você
chovia também nessa ruela
onde caía a noite

e na escuridão que se intumescia de chuva
duas mãos envolveram-me o rosto
a perguntar

na voz mais suave
na voz mais quente

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Alain de Botton



a arte de viajar 

I. da expectativa

"Se nossa vida fosse dominada por uma busca da felicidade, talvez poucas atividades fossem tão reveladoras da dinâmica dessa demanda - em todo o seu ardor e seus paradoxos - como nossas viagens. Elas expressam - por mais que não falem - uma compreensão de como poderia ser a vida, fora das restrições do trabalho e da luta pela sobrevivência. No entanto, é raro que se considere que apresentem problemas filosóficos - ou seja, questões que exijam reflexão além do nível prático. Somos inundados de conselhos sobre os lugares aonde devemos ir, mas ouvimos pouquíssimo sobre por que e como deveríamos ir - se bem que a arte de viajar pareça sustentar naturalmente uma série de perguntas nem tão simples nem tão triviais, e cujo estudo poderia contribuir modestamente para uma compreensão do que os filósofos gregos denominaram pelo belo termo eudaimonia ou desabrochar humano."

                                                                ..............................

"Se somos propensos a esquecer tudo o que há no mundo além daquilo que prevemos, talvez as obras de arte tenham um pouco de culpa, pois nelas encontramos em atividade o mesmo processo de simplificação ou seleção que atua na imaginação. Os relatos artísticos envolvem abreviações radicais daquilo que a realidade nos impingirá. (...) O fato, porém, é que nunca se viaja simplesmente uma tarde inteira. Estamos sentados num trem. Dentro de nós, é estranha a digestão do almoço. O tecido do estofamento é cinza. Olhamos pela janela para um campo. Voltamos a olhar para o interior do trem. Uma quantidade de ansiedades gira pelo consciente. Percebemos uma etiqueta identificadora colada numa mala no porta-bagagens acima dos bancos à nossa frente. Tamborilamos no peitoril da janela. Um pedaço de fio fica preso numa unha quebrada num dedo indicador. Começa a chover. Uma gota  abre um caminho enlameado na janela suja de pó. Ficamos pensando onde poderá estar nossa passagem. Voltamos a olhar para o campo. Continua a chover. Afinal, o trem começa a se movimentar. Passa por uma ponte de ferro, e em seguida pára de modo inexplicável. Uma mosca pousa na janela. E ainda assim poderíamos ter chegado somente ao final do primeiro minuto de um relato abrangente dos acontecimentos que se ocultam por trás da frase enganosa 'ele viajou a tarde inteira'.

Um contador de histórias que nos fornecesse tamanha profusão de detalhes rapidamente provocaria exasperação. Infelizmente, a própria vida costuma assumir esse modo de narração, deixando-nos exaustos com repetições, ênfases equivocadas e enredos incoerentes. Ela insiste em nos mostrar Bardak Electronics, a alça de segurança no carro, um cachorro sem dono, um cartão de Natal e uma mosca que primeiro pousa na borda e depois no centro de um cinzeiro sobrecarregado.

E isso explica o curioso fenômeno pelo qual pode ser mais fácil experimentar os elementos valiosos na arte e na expectativa que na realidade. A imaginação artística e da expectativa omitem e comprimem. Elas eliminam os períodos de tédio e direcionam nossa atenção para os momentos críticos. Desse modo, sem mentir nem enfeitar a verdade, elas conferem à vida uma vivacidade e coerência que lhe pode faltar na confusão indistinta do presente."

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Milan Kundera



a arte do romance

o espírito do romance é o espírito de complexidade. Cada romance diz ao leitor: "as coisas são mais complicadas do que você pensa". essa é a eterna verdade do romance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das respostas simples e rápidas que precedem a questão e a excluem. para o espírito de nosso tempo, é Anna ou então Karenin que tem razão, e a velha sabedoria de Cervantes que nos fala da dificuldade de saber e da inatingível verdade que parece embaraçosa e inútil.
o espírito do romance é o espírito de continuidade: cada obra é a resposta às obras precedentes; cada obra contém toda a experiência anterior do romance. Entretanto, o espírito de nosso tempo está fixado sobre a atualidade, que é tão expansiva, tão ampla, que expulsa o passado do nosso horizonte e reduz o tempo ao único segundo presente. incluído nesse sistema, o romance não é mais obra (coisa destinada a durar, a unir o passado ao futuro), mas acontecimento da atualidade como outros acontecimentos; um gesto sem amanhã.

...

o romance não examina a realidade mas sim a existência. a existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz. os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana.

terça-feira, 22 de julho de 2014

11.



pantufas gregas 

despidas de mitologias
percorreram o caminho imprevisível
[e único]
que as trouxeram até mim
a lã grossa de carneiro
bordada por motivos que eu jamais
teria reconhecido como gregos
dão as formas que escondem
[e carregam]
a desconhecida história das pantufas
teriam elas se perdido nos descaminhos
do Minotauro?
ou foi agora, aquecendo pés
que pisam o traçado moderno da cidade planejada
que realmente se desviaram de seu percurso?

terça-feira, 1 de julho de 2014

Yehuda Amichai



que pena, éramos uma invenção tão boa

eles amputaram
as tuas coxas das minhas ancas.
tanto quanto sei
são todos cirurgiões. todos eles.
eles desmantelaram-nos
um ao outro
tanto quanto sei
são todos engenheiros. todos eles.
que pena. éramos uma invenção
tão boa e tão amável.
um aeroplano feito de um homem e de uma mulher. 
com asas e tudo.
pairávamos ligeiramente por cima da terra.
até voávamos um pouco.



terça-feira, 24 de junho de 2014

Czeslaw Milosz



descrição honesta de si mesmo junto a um copo de whisky no aeroporto, digamos em minneapolis

meus ouvidos ouvem cada vez menos das conversas, meus
olhos vão ficando mais fracos, mas não se fartaram.

vejo suas pernas em minissaias, em calças compridas ou 
tecidos voláteis,

observo uma a uma, suas bundas e coxas, pensativo, 
acalentado por sonhos pornô.

velho depravado, é a cova que te espera, não os jogos e 
folguedos da juventude. 

não é verdade, faço apenas o que sempre fiz, compondo
cenas dessa terra sob as ordens de uma imaginação erótica.

não desejo a estas criaturas, desejo tudo, e elas são como
o signo de uma convivência extática.

não é minha culpa se somos feitos assim, metade contemplação
desinteressada, e metade apetite.

se após a morte eu chegar ao céu, lá deve ser como aqui,
só que me terei desfeito da obtusidade dos sentidos e do 
peso dos ossos. 

tornado puro olhar, sorverei ainda as proporções do corpo
humano, a cor da íris, uma rua de Paris em junho de 
manhãzinha, toda a incompreensível, a incompreensível
multidão das coisas visíveis.

domingo, 22 de junho de 2014

Anthony Giddens



a transformação da intimidade 
sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas 

"Mas as possibilidades radicalizadoras da transformação da intimidade são bastante reais. Alguns têm declarado que a intimidade pode ser opressiva, e isso pode realmente ocorrer se ela for encarada como uma exigência de relação emocional constante. No entanto, se considerada como uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida por iguais, ela surge sob uma luz completamente diferente. A intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública. Há também implicações adicionais. A transformação da intimidade poderia ser uma influência subversiva sobre as instituições modernas como um todo. Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje. As mudanças que atualmente afetam a sexualidade são, na verdade, revolucionárias e muito profundas." 

"Como um ideal emancipatório da democracia, a proibição da violência é de importância básica. Entretanto, atitudes coercitivas nos relacionamentos podem obviamente assumir outras formas além da violência física. Os indivíduos podem estar propensos, por exemplo, a abusar emocional ou verbalmente de outra pessoa; como diz o ditado, o casamento é um substituto medíocre do respeito. Talvez o aspecto mais difícil da equalização do poder no relacionamento seja evitar-se o abuso emocional; mas o princípio direcionador é evidentemente o respeito pelo ponto de vista independente e pelos traços pessoais do outro."

"E quanto à responsabilidade e a sua relação com a autoridade? Nos relacionamentos puros, tanto a responsabilidade quanto a autoridade - onde ela existe - estão profundamente vinculadas à confiança. A confiança sem responsabilidade pode tornar-se unilateral, ou seja, cair na dependência; a responsabilidade sem confiança é impossível, porque significaria o escrutínio contínuo dos motivos e das ações do outro. A confiança implica a confiabilidade do outro - conferindo um 'crédito' que não requer uma verificação contínua, mas que, se necessário, pode ser aberto periodicamente para uma inspeção. Ser considerado confiável por um parceiro é um reconhecimento de integridade pessoal, mas em um ambiente igualitário tal integridade significa também revelar, quando solicitado, os motivos para as ações - e na verdade ter boas razões para quaisquer ações que afetem a vida do outro."

"A sexualidade tem esta enorme importância na civilização moderna por ser um ponto de contato com tudo aquilo que tem sido renunciado em prol da segurança técnica que a vida cotidiana oferece."

"Particularmente em suas relações com o gênero, a sexualidade deu origem à politica do individual, uma expressão mal-interpretada se estiver vinculada apenas à emancipação. De preferência, o que deveríamos chamar de política de vida é uma política de estilo de vida, operando no contexto da reflexividade institucional. Ela não se destina a 'politizar', em um sentido estrito do termo, as decisões de estilo de vida, mas remoralizá-las - colocando de maneira mais exata, trazer à tona aquelas questões morais e existenciais afastadas da vida cotidiana pelo sequestro da experiência."

"Uma consideração possível é que quanto maior o nível de igualdade alcançado entre os sexos, mais as formas preexistentes de masculinidade e feminilidade estão propensas a convergir para algum tipo de modelo andrógeno."

"À medida que a anatomia deixa de ser destino, a identidade sexual cada vez mais torna-se uma questão de estilo de vida."

"Não há lugar para a paixão nos ambientes rotinizados que nos proporcionam segurança na vida social moderna. Mas quem pode viver sem paixão, se a encaramos como a energia motriz da convicção? A emoção e a motivação estão inerentemente conectadas."

"Com a emergência da modernidade, a emoção torna-se de muitas maneiras uma questão de política de vida. No reino da sexualidade, a emoção como um meio de comunicação, e também de compromisso e de cooperação com os outros, é especialmente importante. O modelo de amor confluente sugere uma estrutura ética para a promoção de emoção não-destrutiva na conduta do indivíduo e da vida comunitária. Proporciona a possibilidade de uma revitalização do erótico - não como uma habilidade especial das mulheres impuras, mas como uma qualidade genérica da sexualidade nas relações sociais formadas pela mutualidade, ao invés do poder desigual. O erotismo é o cultivo do sentimento, expresso pela sensação corporal, em um contexto comunicativo; uma arte de dar e receber prazer."


terça-feira, 10 de junho de 2014

10.



praia do futuro 

você coloca aquela música que só nós dois sabemos cantar. começo o embalo sozinha, com aquele meu jeito de quem não sabe dançar. mas, mesmo sem ensaio, nossos movimentos fazem sentido, se encaixam. encontramos nossa coreografia própria e íntima. é a pele que guia. a música ecoa dentro das nossas quatro paredes. aqui nada mais é secreto. não há grito mais alto do que aquilo que sussurro em teu ouvido. não há resto de mundo. aqui, até o inverno aquece.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

9.



insurgência
 
gosto desse invulgar encontro
onde meus braços viram tuas pernas
minha boca tua nuca
tuas coxas minha língua
tua voz em minha pele
 
entre nós
nada mais é secreto
somos um todo
tudo incerto
coração a ermo
na certa, perde-se
 
[um dia, você pediu que eu não me rebelasse
fui desarmada
mas desobedeci]

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Alice Ruiz e Itamar Assumpção



milágrimas

em caso de dor, ponha gelo
mude o corte do cabelo
mude como modelo
vá ao cinema, dê um sorriso
ainda que amarelo
esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido
troque já este vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério, deixe os critérios
siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada milágrimas sai um milagre
em caso de tristeza vire a mesa
coma só a sobremesa
coma somente a cereja
jogue para cima, faça cena
cante as rimas de um poema
sofra apenas, viva apenas
sendo só fissura, ou loucura
quem sabe casando cura
ninguém sabe o que procura
faça uma novena, reze um terço
caia fora do contexto, invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre
mas se apesar de banal
chorar for inevitável
sinta o gosto do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre
a cada milágrimas sai um milagre

Rainer Maria Rilke



cartas a um jovem poeta 

maio 14, 1904, Roma

amar também é bom:
porque o amor é difícil.
o amor de duas criaturas humanas
talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta,
a maior e última prova,
a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação.
por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo,
não sabem amar: tem que aprendê-lo.
como todo o seu ser,
com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário,
medroso e palpitante,
devem aprender a amar.
mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura.
assim, para quem ama,
o amor,
por muito tempo e pela vida afora,
é solidão,
isolamento cada vez mais intenso e profundo.
o amor, antes de tudo,
não é o que se chama entregar-se,
confundir-se, unir-se a outra pessoa.
que sentido teria, com efeito,
a união com algo não esclarecido,
inacabado, dependente?
o amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer,
tornar-se algo em si mesmo,
tornar-se um mundo para si,
por causa de um outro ser;
é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz,
uma escolha e um chamado para longe.
do amor que lhes é dado,
os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos.
a fusão com o outro, a entrega de si,
toda espécie de comunhão não são para eles;
são algo de acabado para o qual,
talvez, mal chegue atualmente a vida humana.
creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso
em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão
profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou sua vida.

terça-feira, 20 de maio de 2014

André Gorz



carta a d. 

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.

Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traître, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver.

Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes? Por que eu não disse o que me fascinou em você? Por que eu a apresentei como uma coitadinha, "que não conhecia ninguém, não falava uma palavra de francês e que sem mim teria se destruído", se você tinha o seu círculo de amigos, fazia parte de um grupo de teatro de Lausanne e era esperada na Inglaterra por um homem determinado a se casar com você?

Na verdade, não explorei em profundidade aquilo a que me propunha ao escrever Le Traître. Para mim, ainda restam muitas questões a serem compreendidas e esclarecidas. Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro, um para o outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.

Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda das inglesas.

Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção. Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is an Austrian Jew. Totally devoid of interest".

Um mês depois cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947. 

Meu inglês era desajeitado, mas passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída, percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf, George Eliot, Tolstói, Platão...

Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos.

De onde você tirava essa segurança? E, no entanto, você também teve pais separados; deixou-os cedo, um depois do outro; nos últimos anos da guerra, morou sozinha com Tabby, o seu gato, e dividia com ele a sua comida racionada. E, por fim, saiu do seu país para explorar outros mundos. Em que poderia lhe interessar um Austrian Jew sem um tostão?

Eu não entendia. Não sabia que ligações invisíveis se teciam entre nós. Você não gostava de falar do seu passado. Pouco a pouco, compreenderei que experiência fundadora nos tornou subitamente próximos um do outro.

Nos encontramos de novo. Fomos dançar mais uma vez. Vimos juntos Le Diable au corps, com Gérard Philipe. Há no filme uma seqüência em que a heroína pede ao sommelier para trocar uma garrafa de vinho já aberta e bem consumida porque, segundo ela, dava para sentir o gosto da rolha. Tentamos reeditar essa manobra numa boate, e o sommelier, depois de verificar, contestou o diagnóstico. Diante de nossa insistência, ele nos mandou às favas, com muita determinação: "Nunca mais ponham os pés aqui!". Fiquei espantado com o seu sangue-frio e a sua sem-cerimônia. Pensei comigo mesmo: "Fomos feitos para nos entendermos". Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você.

Não tínhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura.

Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Adélia Prado




casamento 

há mulheres que dizem:
meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
eu não. a qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
é tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

o silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

8.



curtinhas 

pra esquecer você
só precisei lembrar
quem sou eu 

*** 

não vim de lugar comum
pra saber 
onde vou chegar

segunda-feira, 21 de abril de 2014

7.




apenas algumas invenções habituais do ser humano em busca de um sentido para a vida

A noite está bonita e fresca. Um céu limpo, com tons mais avermelhados do que negros, revela indícios de que o universo é muito maior do que qualquer vida na Terra. A luz das estrelas invade a escuridão e atiça a lembrança de uma beleza que já se foi. Muitas vezes, nem a velocidade da luz é suficiente para trazer o brilho de algo enquanto ele ainda existe. Aquela estrela está realmente lá? Não sei. Mas, de alguma forma, continua a iluminar o cotidiano dos homens. A memória também aquece. 

Eu ainda gosto de caminhar à noite. A ausência não carregou o antigo hábito, que se consolidou na presença de um outro. Muito pelo contrário, ela mostrou algo que era meu. O meu olhar nota com clareza que o mundo é cheio de coisas infinitamente grandes e de coisas infinitamente pequenas. O mundo está para quem o quer ver. Ingenuamente, acreditamos necessitar sempre de ajuda para isso. Alguma lente de aumento, o silêncio das montanhas, as sábias palavras de um grande pensador, a exatidão científica, a companhia aconchegante daquele que um dia cruzou o seu caminho. Inseguros, não percebemos que temos tudo o que precisamos. 

O outro é palco para encontros e descobertas. De nós mesmos só sabemos aquilo que nos é posto à prova. E a provocação costuma vir de um outro. Entre tantos, alguns marcaram mais. O primeiro foi porto seguro. Sabia que com ele sempre receberia muito cuidado e, por isso, precisei ir. Mas ele foi o primeiro voto de confiança nessa caminhada. Veio a paixão, a devoção de dois corpos e almas que sabem se entregar. E a certeza de um amor que consegue mudar para permanecer. Depois, surgiu aquele encantamento súbito, que teve vida como amizade, mas que ainda verte-se de carinho nas noites mais solitárias. Existiu aquele do cotidiano amoroso íntimo e improvisado; entremeado pela violência que nunca perdoou a vontade de manter minha história viva. Os carinhos e experiências compartilhados por tantos anos, que imaginávamos que nunca fossem acabar, tiveram um final aterrador. Mais uma certeza que se cai. Nem sempre o amor permanece. O mais recente não foi mais do que uma promessa. O desejo de adentrar novamente a quitinete simples, com cortinas descascadas, por onde vazam os raios de sol que realçam a fumaça do cigarro que ele fuma ansioso na cadeira de balanço. Cada um inesquecível ao seu modo, parte inevitável daquilo que sou hoje. 

Recomeço é me perceber diante de cada um que passou. O prazer de caminhar à noite é meu, embora com você tenha sido muito bom. A temperatura amena, as horas que passam mais devagar ainda me acalmam. Mesmo que não o tenha mais ao meu lado. O chá de gengibre também não perdeu o seu sabor e suas propriedades medicinais por não ser ele quem o faz. O verso roubado ganhou um novo sentido: resta ainda tudo / só nós não podemos ser. Mas o tudo que resta é tanto. É a crença no amor que se restabelece. É a história que vivo e sei contar. Memória aquece quando você percebe que ela é sua. O brilho da estrela que não mais existe continua a iluminar.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Carlos Drummond de Andrade



ausência

por muito tempo achei que a ausência é falta.
e lastimava, ignorante, a falta.
hoje não a lastimo.
não há falta na ausência.
a ausência é um estar em mim.
e sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

sexta-feira, 21 de março de 2014

6.






carnis valles*

findou março
e eu [feito uma boba]
permaneço
naquelas noites de carnaval
o teu olhar encontrou o meu
em meio a multidão
o querer veio 
sem aval
sem espera
de fantasia, não fiz quimera
devore-me antes de qualquer coisa e
decifre-me só
quando o bloco chegar ao final

começou abril 
e eu não esqueço
não me abrace desse jeito
que o beijo teve 
um encaixe perfeito
entre rodopios e gargalhadas
a purpurina que depois impregnou teus lençóis
junto ao suor dos corpos feridos
de prazer e ternura
a carne nua
saciada à exaustão

os meses não pararam
o que havia de pagão já é passado
mas ressuscitou-me a fé
não fomos mais que três ou quatro dias de tudo
de um punhado de intimidade
de delícia, de medo, de ansiedade
e de um pacote de biscoitinho de queijo
mas em cada sorriso meu
[e dele sei que você gosta]
juro que deixo
uma promessa
que não é de espera
o que tenho 
não é pressa
e sim, uma saudade imensa
daquelas noites de festa

* A expressão latina carnis valles (carnis significa carne e valles significa prazeres) deu origem à palavra carnaval.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Górki



minhas universidades 

Curvado, apoiando as mãos nos joelhos, espiei por uma janela; através das rendas da cortina, pude ver uma toca quadrada, as paredes cinzentas eram iluminadas por um pequeno lampião com um quebra-luz, abaixo do lampião, com o rosto voltado para a janela, estava sentada uma garota, e ela escrevia. e então levantou o cabelo e, com  um porta-penas vermelho, ajeitou uma mecha de cabelo na têmpora. Seus olhos estavam semicerrados, o rosto sorria. Lentamente, dobrou a carta, fechou o envelope, passou a língua pela borda e, após jogar o envelope sobre a mesa, ameaçou-o  com um dedo pequeno - menor que o meu mindinho. Mas pegou a carta outra vez, rasgou a beirada do envelope, leu, fechou-a dentro de outro envelope, redigiu o endereço, curvada sobre a mesa, e brandiu a carta no ar, como uma bandeira branca. Girando, de braços erguidos, foi até um canto, onde ficava a sua cama, depois saiu dali, já sem a blusa de dormir - tinha os ombros redondos feito pãezinhos doces - , apanhou o lampião na mesa e desapareceu num canto. Quando a gente observa como se comporta uma pessoa completamente sozinha, dá a impressão de que ela está louca. Fiquei andando pelo pátio, pensando em como aquela moça vivia de forma estranha, quando estava sozinha em sua toca.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Yehuda Amichai


um homem e a sua vida

Um homem não tem tempo na sua vida
para ter tempo para tudo.
Não tem momentos que cheguem para ter
momentos para todos os propósitos. Eclesiastes
está enganado acerca disto.

Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,
de rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,
de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.
E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
de planear e confundir, de comer e digerir
que história
leva anos e anos a fazer.

Um homem não tem tempo.
Quando perde procura, quando encontra
esquece, quando esquece ama, quando ama
começa a esquecer. 

E a sua alma é erudita, a sua alma
é profissional.
Só o seu corpo permanece sempre
um amador. Tenta e falha,
fica confuso, não aprende nada,
embriagado e cego nos seus prazeres
e nas suas mágoas.

Morrerá como um figo morre no Outono,
Enrugado e cheio de si e doce,
as folhas secando no chão,
os ramos nus apontando para o lugar
onde há tempo para tudo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Rainer Maria Rilke


os cadernos de malte laurids brigge

Estou em Paris; quem o ouve fica alegre, os mais deles invejam-me. Têm razão. É uma grande cidade; grande e cheia de estranhas tentações. Pelo que me diz respeito, devo confessar que em certo sentido sucumbi perante elas. Parecem-me que não se pode dizer de outra forma. Sucumbi a estas tentações, e isso trouxe atrás de si certas transformações, senão no meu caráter, pelo menos na minha concepção de mundo e da vida, em todo o caso na minha vida. Uma compreensão totalmente diferente de todas as coisas formou-se em mim sob estas influências; há certas diferenças que me separam dos homens mais que tudo até agora. Um mundo transformado. Uma vida nova cheia de novas significações. De momento, é tudo um pouco difícil, por ser tão novo. Sou um principiante nas minhas próprias condições de vida.