sexta-feira, 17 de julho de 2020

Italo Calvino


cidades invisíveis 

as cidades e as trocas 


Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num estante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesão com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por um acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.

Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões e o carrossel das fantasias teria fim.

terça-feira, 14 de julho de 2020

bell hooks



Ensinando a transgredir

Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças, a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada turma. Para abraçar o aspecto teatral do ensino, temos de interagir com a "plateia", de pensar na questão da reciprocidade. Os professores não são atores no sentido tradicional do termo, pois nosso trabalho não é um espetáculo. Por outro lado, esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais, a se tornar partes ativas no aprendizado.

A voz engajada não pode ser fixa e absoluta. Deve estar sempre mudando, sempre em diálogo com um mundo fora dela.

Nos ensinam a crer que a dominação é "natural", que os fortes e poderosos têm o direito de governar os fracos e impotentes. O que me espanta é que, embora tanta gente afirme rejeitar esses valores, nossa rejeição coletiva está longe de ser completa, visto que eles ainda prevalecem em nossa vida cotidiana.

Quando se acrescenta a isso as onipresentes suposições de que os negros, as mulheres brancas e outras minorias estão tirando os empregos dos homens brancos, e de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem, fica mais do que evidente que a crise contemporânea é criada em parte por uma falta de acesso significativo à verdade. Ou seja:  não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz. Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana, nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente, assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça.

"A diversidade que se constitui de algum modo como uma harmônica colagem de esferas culturais benignas é uma modalidade conservadora e liberal de multiculturalismo que, a meu ver, merece ser jogada fora. Quando tentamos transformar a cultura num espaço imperturbado de harmonia e concordância, onde as relações sociais existem dentro da forma cultural de um acordo ininterrupto, endossamos um tipo de amnésia social onde esquecemos que todo conhecimento é forjado em histórias que se desenrolam no campo dos antagonismos sociais." citação de Peter McLaren

Vamos encarar a realidade: a maioria de nós frequentamos escolas onde o estilo de ensino refletia a noção de uma única norma de pensamento e experiência, a qual éramos encorajados a crer que fosse universal.

Tivemos de lembrar a todos, várias vezes, que nenhuma educação é politicamente neutra.

Minha  desconfiança se baseia na percepção de que uma crítica do essencialismo que desafie somente os grupos marginalizados a questionar seu uso da política de identidade ou de um ponto de vista essencialista como meios de exercer poder coercitivo deixa incontroversas as práticas críticas de outros grupos que empregam as mesmas estratégias de diferentes maneiras e cujo comportamento excludente pode ser firmemente amparado por estruturas de dominação institucionalizadas que não o criticam nem o restringem. Ao mesmo tempo, não quero que as críticas à política de identidade possam se transformar num método novo, e chique, para silenciar os alunos de grupos marginais.

A política de identidade nasce da luta de grupos oprimidos ou explorados para assumir uma posição a partir da qual possam criticar as estruturas dominantes, uma posição que dê objetivo e significado à luta. As pedagogias críticas da libertação atendem a essas preocupações e necessariamente abraçam a experiência, as confissões e os testemunhos coo modos de conhecimento válidos, como dimensões importantes e vitais de qualquer processo de aprendizado.

A prática do diálogo é um dos meios mais simples com que nós, como professores, acadêmicos e pensadores críticos, podemos começar a cruzar as fronteiras, as barreiras que podem ser ou não erguidas pela raça, pelo gênero, pela classe social, pela reputação profissional e por um sem-número de outras diferenças.

O mascaramento do corpo nos encoraja a pensar que estamos ouvindo fatos neutros e objetivos, fatos que não dizem respeito à pessoa que partilha a informação. Somos convidados a transmitir informações como se elas não surgissem através dos corpos. Significativamente, aqueles entre nós que estão tentando criticar os preconceitos na sala de aula foram obrigados a voltar ao corpo para falar sobre si mesmos como sujeitos da história. Todos nós somos sujeitos da história.

O impulso de experimentar práticas pedagógicas pode não ser bem recebido por alunos que frequentemente esperam que ensinemos da maneira com que eles estão acostumados. O que  quero dizer é que é preciso um compromisso fortíssimo, uma vontade de lutar, de deixar que nosso trabalho de professores reflitas as pedagogias progressistas.

O prazer na sala de aula provoca medo.

Como já dissemos, podemos intervir e modificar essa resistência partilhando nossa compreensão da prática. Digo aos alunos que não confundam a informalidade com uma falta de seriedade, que respeitem o processo.

Poucos professores falam sobre o lugar das emoções na sala de aula. No capítulo introdutório deste livro, falo sobre minha vontade de que a sala de aula seja um lugar de entusiasmo. se formos todos emocionalmente fechados, como poderá haver entusiasmo pelas ideias?