quarta-feira, 29 de maio de 2013

Wislawa Szymborska


um minuto de silêncio por ludwika wawrzýnska*
(1975)


E tu aonde vais?
Se ali já só há fumo e fogo!
- Ficaram lá quatro crianças,
vou buscá-las!

Como é possível
assim de repente
desprender-se de si próprio?
Da ordem do dia e da noite?
Das neves do ano que vem?
Dos rubores das maçãs?
Da mágoa do amor
que nunca é demais?

Sem se despedir, nem ser despedida
sozinha a correr acode as crianças,
olhem só, trá-las em braços,
mergulhando no fogo até aos joelhos,
levando o fulgor no cabelo revolto.

Ela, que queria comprar um bilhete,
sair da cidade por um tempo,
escrever uma carta,
abrir a janela após a trovoada,
trilhar o caminho aberto no bosque,
espantar-se com as formigas,
ver como o lago se enruga
com o sopro do vento.

Um minuto de silêncio pelos mortos
perdura às vezes pela noite fora.

Sou testemunha ocular
do voo das nuvens e dos pássaros,
ouço a relva crescer
e sei como ela se chama,
decifrei milhões
de caracteres impressos,
segui com o telescópio
estrelas bizarras,
só que até hoje
ninguém me pediu socorro
e se acaso lamento
uma folha, um vestido, um poema –

De nós próprios só sabemos,
o que nos foi posto à prova.
É isto o que eu vos digo
deste meu coração que desconheço.


*Ludwika Wawrzyńska - professora primária que salvou de um incêndio quatro crianças, vindo a falecer em consequência das queimaduras sofridas.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Mia Couto


saudades

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Paul Valéry



degas dança desenho

"Esse exercício pelo informe ensina, entre outras coisas, a não confundir o que se acredita ver com o que se vê. Há uma espécie de construção na visão, de que somos dispensados pelo hábito. Adivinhamos ou prevemos, em geral, mais do que vemos, e as impressões do olho são para nós signos, e não presenças singulares, anteriores a todos os arranjos, resumos, escorços, substituições imediatas que a educação elementar nos inculcou.
Assim como o pensador tenta se defender das palavras e das expressões prontas que dispensam os espíritos de se surpreender com tudo e tornam possível a vida prática, do mesmo modo o artista pode, pelo estudo das coisas informes, isto é, de forma singular, tentar encontrar sua própria singularidade e o estado primitivo e original da coordenação de seu olho, de sua mão, dos objetos e de seu querer.
No grande artista, a sensibilidade e a técnica possuem uma relação particularmente íntima e recíproca que, no estado vulgarmente conhecido sob o nome de inspiração, alcança uma espécie de gozo, troca ou correspondência quase perfeita entre o desejo e aquilo que o realiza, o querer e o poder, a ideia e o ato, até o ponto de resolução em que se interrompe esse excesso de unidade composta, em que o ser excepcional que tinha se constituído a partir de nossos sentidos, nossas forças, nossos ideais, nossos tesouros adquiridos, se desloque, se desfaça, nos abandone a nosso comércio de minutos sem valor em troca de percepções sem futuro, deixando atrás algum fragmento que só pode ter sido obtido em um tempo,  ou em um mundo, ou sob uma pressão, ou graças a uma temperatura da alma bastante diversos daqueles que contêm ou produzem o Seja o que for...
Digo um fragmento, pois há poucas chances de que essas uniões muito breves nos entreguem toda uma obra de alguma extensão.
Nesse ponto intervêm o saber, a duração, as retomadas, os julgamentos. É preciso uma boa cabeça para explorar os acasos felizes, dominar os achados, e terminar.
Alguns se perguntam se o pintor tem necessidade de saber outra coisa além de ver e se servir de sua técnica.
Dizem, por exemplo: Muitos maus pintores conheceram a anatomia que muitos bons pintores ignoraram.Logo, nada de anatomia."

sexta-feira, 10 de maio de 2013

4.




um palpite sobre paulo moura

Talvez Paulo Moura soubesse que aquela seria a sua última roda de choro. Não digo isso por achar que todos nós possamos sentir quando a morte se aproxima. Muita gente diz que, não só a pressentimos, como podemos ver o tal filme de nossas vidas nos últimos instantes. Pode ser que isso aconteça para alguns, mas existem formas tão diversas de morrer, que acho ingênuo estender essa condição à humanidade inteira. Acredito que, muitas vezes, o fim chega sem avisar. E o alguém se vai sem nem mesmo perceber o que foi.
Mas esse não era o caso do instrumentista. Ele já tinha 77 anos e estava doente há algum tempo. Creio que nessas condições, o ato de pensar sobre a morte acomete mesmo os mais resistentes a esse assunto. Em algum momento, é difícil não cogitar, ainda que em um rápido lampejo, que aquela deva ser a última vez a se fazer determinada coisa ou a ver certa pessoa. Não considero, no entanto, essas suposições como algo pessimista. A serenidade com que permitimos que essas possibilidades de pequenas e inevitáveis perdas adentrem o nosso cotidiano pode ser importante para se aprender a morrer.
Paulo Moura me parecia sereno naquele dia. Eduardo Escorel, o cineasta que registrou a última roda de choro do músico, relatou, durante um debate no Festival É Tudo Verdade, que a clarineta de Moura nem estava montada. Mas ele insistiu para que aprontassem o instrumento. Empunhou a sua habitual clarineta de acrílico e acompanhou a canção Doce de Coco, de Jacob do Bandolim. O antigo virtuosismo deu lugar a um fôlego escasso, a mãos trêmulas. Todo mundo podia ver que ele estava velho e doente. Mesmo assim ele quis tocar. E tocou lindamente. Dois dias depois, faleceu.
O registro dessa despedida, no entanto, não pôde fazer parte do documentário que Escorel produziu sobre o clarinetista. Algumas das pessoas que estiveram presentes naquele momento não autorizaram o uso das imagens. Segundo o cineasta, elas acreditavam que, de alguma maneira, aquela última aparição poderia manchar a reputação de Moura. Na minha cabeça, isso nada mais é do que um reflexo do quanto estamos despreparados para lidar com o envelhecimento e com a morte. Em que momento, uma cena de uma beleza tão evidente se tornou um sinônimo de indignidade?
Envelhecer tomou um significado pejorativo, pois é o caminho natural que leva à morte. E morte, atualmente, carrega um sentido tão ruim, tão temeroso, que preferimos passar a vida inteira sem nem pensar sobre isso. Mas nos esquecemos que aprender a morrer é condição para que aprendamos a viver bem. A capacidade de lidar com a certeza de que tudo terá um fim pode, gradualmente, nos ensinar a concentrar nossa atenção naquilo que realmente importa para uma vida melhor. Para Moura, o que importava era a música.
Desde que li o livro “A morte de Ivan Ilitch” , de Tolstói, foi difícil parar de pensar sobre a morte. Mas, admito que era de uma maneira um tanto receosa. O russo retrata a morte de um burguês de maneira tão crua e dolorida, porém, ao mesmo tempo tão real, que me ficou marcada a ideia de que a despedida da vida seria um misto de amargura e arrependimentos. Em meio a isso, a cena de Paulo Moura me vem como um alento. Aquele sorriso no final da canção, o beijo na clarineta, me fazem ter o palpite de que ele ficou satisfeito com a sua despedida. E com a vida que teve.

A cena da despedida de Paulo Moura: http://www.youtube.com/watch?v=kjQUQJrBapU

sexta-feira, 3 de maio de 2013

3.





em cima da pedra debaixo do céu
uma estrela fulgaz:
o desejo era só o instante