terça-feira, 3 de abril de 2018

Valter Hugo Mãe


a máquina de fazer espanhóis

"um dia, essa saudade vai ser benigna. a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de vida."

"a minha história é a de todos os homens. não é história nenhuma, não tem novidade. passei nenhum heroísmo senão o de ter chegado velho e apaixonado, que muitos não o conseguiram e talvez o tivessem querido tanto quanto eu."

"eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros respondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didácticos anos. mas para chegarmos aí temos que sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar  o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo."

"sentir  o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios. muita coisa é apenas uma saudade. muitos dos sentimentos. "

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Mia Couto


o poente da bandeira 

"abril: sim, deve ser demasiado abril."

"quem é este menino que faz do mundo outro menino? deixemos seu nome, esqueçamos seu lugar."

" - você, miúdo, não aprendeu respeitos com a bandeira?
sente o sangue escorrendo, a bota do soldado ainda lhe dói uma última vez. como pode saber ele os procedimentos exigidos pelo vigilante? mas o soldado é totalmente militar: está só cumprindo ignorâncias, jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um lei de fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, tão sem pedrinhas que os pés nem tinham que escolher. Um caminho que dispensava toda bandeira. à medida que o soldado desfere mais violência, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em redor esfria e a luz tomba de joelhos. é, então.
sucede coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. fluvial, o pano migra para outros céus. no momento, se vê o quanto as bandeiras roubam aos azuis celestiais.
mas o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o presságio. porque, no sequente instante, a palmeira se despenha das suas alturas fulminando o soldado, em clarão de rasgar o mundo em dois. sobem confusas poeiras, mas depois a palmeira se esclarece, tombada em assombro, junto aos corpos.