domingo, 2 de dezembro de 2018

Valter Hugo Mãe


o paraíso são os outros

A coisa mais divertida de perceber: os casais não eram família antes. Eram gente desconhecida que se torna família. Mesmo que os filhos julguem que pai e mãe se conhecem desde sempre, isso não precisa de ser verdade.
Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido.
Por vezes, faço uma lista com os nomes das minhas pessoas importantes para as lembrar. Mesmo que não lhes fale, penso em como estarão, se bem ou mal. Quando me parece que podem estar mal telefono e perguntar. Quase sempre  estou errada. Mas gosto de ter a certeza do erro.
A minha mãe diz que só crescemos quando reconhecemos os nossos erros. Enquanto não o fizermos seremos menores. Crescer é diferente de aumentar de tamanho ou ganhar idade. A minha mãe diz  que grandes são os que se corrigem.

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Eu fui bem avisada: a pessoa que um dia amarei haverá de estar entretida com a sua vida, como eu.

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Um dia, eu e essa pessoa desconhecida vamo-nos encontrar por algum motivo e uma intuição talvez nos diga que chegámos à vida um do outro. Eu nem sempre acredito nisso. Mas não posso deixar de estar atenta. Aliás, sou mesmo assim, fico atenta a toda a gente. Gosto de olhar discretamente. Confesso.
Imagino a vida dos outros. Não é por cobiça. É por vontade de que dê certo. Por exemplo, vejo alguém sem cabelo e invento que há gente que só gosta de homens carecas e então ser careca passa a ser uma vantagem ou, pelo menos, desvantagem nenhuma.
Acho que invento a felicidade para compor todas as coisas e não haver preocupações desnecessárias. E inventar algo bom é melhor do que aceitarmos como definitiva uma qualquer realidade má. A felicidade também é estarmos preocupados só com aquilo que é importante. O importante é desenvolvermos coisas boas, das de pensar, sentir ou fazer.

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O amor precisa de ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Chimamanda Adichie


fantasmas

"Não vou à igreja; parei de ir depois da primeira visita de Ebere, porque não tinha mais incertezas. É nossa desconfiança com a vida após a morte que nos leva à religião. Por isso, aos domingos, eu me sento na varanda, observo os abutres pisando no meu telhado e imagino que eles estão espiando, intrigados.
'É uma vida boa, papai?', Nkiru tem perguntado ultimamente por telefone, com aquele leve sotaque americano que me perturba um pouco. Não é boa, nem ruim, respondo; é apenas a minha vida. E é isso que importa."

terça-feira, 3 de abril de 2018

Valter Hugo Mãe


a máquina de fazer espanhóis

"um dia, essa saudade vai ser benigna. a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de vida."

"a minha história é a de todos os homens. não é história nenhuma, não tem novidade. passei nenhum heroísmo senão o de ter chegado velho e apaixonado, que muitos não o conseguiram e talvez o tivessem querido tanto quanto eu."

"eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros respondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didácticos anos. mas para chegarmos aí temos que sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar  o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo."

"sentir  o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios. muita coisa é apenas uma saudade. muitos dos sentimentos. "

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Mia Couto


o poente da bandeira 

"abril: sim, deve ser demasiado abril."

"quem é este menino que faz do mundo outro menino? deixemos seu nome, esqueçamos seu lugar."

" - você, miúdo, não aprendeu respeitos com a bandeira?
sente o sangue escorrendo, a bota do soldado ainda lhe dói uma última vez. como pode saber ele os procedimentos exigidos pelo vigilante? mas o soldado é totalmente militar: está só cumprindo ignorâncias, jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um lei de fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, tão sem pedrinhas que os pés nem tinham que escolher. Um caminho que dispensava toda bandeira. à medida que o soldado desfere mais violência, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em redor esfria e a luz tomba de joelhos. é, então.
sucede coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. fluvial, o pano migra para outros céus. no momento, se vê o quanto as bandeiras roubam aos azuis celestiais.
mas o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o presságio. porque, no sequente instante, a palmeira se despenha das suas alturas fulminando o soldado, em clarão de rasgar o mundo em dois. sobem confusas poeiras, mas depois a palmeira se esclarece, tombada em assombro, junto aos corpos.