sábado, 29 de outubro de 2016

Wislawa Szymborska



feira dos milagres

um milagre comum:
isso de acontecerem muitos milagres comuns.

um milagre normal:
no silêncio da noite
o latido de cães invisíveis.

um milagre entre tantos:
uma nuvenzinha etérea e pequena
que consegue ocultar a lua grande e pesada.

vários milagres em um:
um amieiro refletido na água
estar virado da esquerda para direita,
crescer ali com a copa para baixo
e não atingir nunca o fundo,
embora água seja rasa.

um milagre na ordem do dia:
vento leve a moderado,
tempestuoso nas tormentas.

um primeiro milagre melhor:
as vacas são vacas.

um outro não pior:
este e não outro pomar
desta e não outra semente.

um milagre sem fraque nem cartola:
pombas brancas levantando voo.

um milagre - pois como chamá-lo:
o sol hoje nasceu às três e catorze
e vai se pôr às vinte mais um minuto.

um milagre que não causa tanto espanto quanto devia:
há na verdade menos de seis dedos na mão,
porém mais de quatro.

um milagre, é só olhar em volta:
o mundo onipresente.

um milagre extra, como extra é tudo:
o inimaginável
é imaginável.

Wislawa Szymborska



a casa de um grande homem

escrito no mármore em letras douradas:
aqui viveu e trabalhou e morreu um grande homem.
ele próprio espalhou o cascalho nestas veredas.
este banco - não tocar - ele esculpiu na pedra.
e - atenção - três degraus - vamos entrar.

conseguiu vir ao mundo num tempo ainda adequado.
tudo que devia se passar se passou nesta casa.
não em conjuntos residenciais,
não em áreas mobiliadas mas vazias,
entre vizinhos desconhecidos,
em décimos quintos andares
para onde seria difícil conduzir excursões escolares.

neste quarto meditava,
nesta alcova dormia
e aqui recebia as visitas.
retratos, poltrona, escrivaninha, cachimbo, globo, flauta,
tapete gasto, varanda envidraçada.
aqui trocava reverências com o alfaiate e o sapateiro
que costuravam sob medida para ele.

não é mesma coisa que fotografia  em caixas,
canetas com tinta seca em canecas de plástico,
roupas em séries nos armários de série,
janela da qual se veem melhor nuvens do que pessoas.

feliz? infeliz?
não se trata disso.
ainda fazia confidências nas cartas,
sem pensar que no trajeto seriam abertas.

mantinha também um diário preciso e sincero,
sem temor de vê-lo confiscado numa revista.
mais que tudo o inquietava o passar de um cometa.
o fim do mundo estava só nas mãos de deus.

teve ainda sorte de não morrer num hospital,
atrás de uma divisória branca qualquer.
junto a ele havia alguém que memorizou
as palavras balbuciadas.

como se lhe tivesse sido dada
uma vida muitas vezes reutilizável:
mandava recapar os livros,
não apagava da agenda os nomes dos mortos.
e as árvores que plantou no jardim da casa
cresciam-lhe ainda como junglans regia
e quercus rubra e ulmus regia
e fraxinus excelsior.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Wislawa Szymborska



visto do alto 

um besouro morto num caminho campestre.
três pares de perninhas dobradas sobre o ventre.
ao invés da desordem da morte - ordem e limpeza.
o horror da cena é moderado,
o âmbito estritamente  local, da tiririca à mente.
a tristeza não se transmite.
o céu está azul.

para nosso sossego, os animais não falecem,
morrem de uma morte por assim dizer mais rasa,
perdendo - queremos crer - menos sentimento e mundo,
partindo - assim nos parece - de uma cena menos trágica.
suas alminhas dóceis não nos assombram à noite,
mantêm distância,
conhecem as boas maneiras.

e assim esse besouro morto no caminho,
não pranteado, brilha ao sol.
basta pensar nele a duração de um olhar:
parece que nada de importante lhe aconteceu.
o importante supostamente tem a ver conosco.
com a nossa vida somente, só com a nossa morte,
uma morte que goza de forçada precedência.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Cezar Migliorin



inevitavelmente cinema

Uma das marcas da reflexão de Rancière sobre a educação é a sua ênfase no fato de que a emancipação não está no futuro, mas na cena presente; é menos um projeto que uma prática. A igualdade não é algo que se alcançará no fim de um processo, nem está submetida a um projeto e a relações  de causa e efeito. A cena igualitária de Amiro, por exemplo, está justamente na forma como o professor e os elementos não-humanos da experiência do menino podem habitar a mesma construção do conhecimento e o mesmo processo subjetivo. [...] Nas palavras de Rancière "A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve ser colocada antes."

Trazemos a noção de emancipação por entendermos que a possibilidade de criação na educação e, consequentemente, de uma aproximação sensível com a diferença, passa por uma perturbação das separações que fazem do estudante um sujeito sem mundo ou desejo e um receptor de um universo que se repete em seu intelecto e corpo. Para que essa repetição se efetive é preciso criar o estudante como o ignorante do grupo. A emancipação, ao contrário, é essencial para que qualquer ação que tenha o direito do outro como algo central se estabeleça. No caso da escola, a cena igualitária está aberta à presença do que estudantes podem trazer de seus mundos, aos gostos dos professores e urgências da comunidade. Entretanto, é na cena igualitária que aparecem as desarmonias, as diferenças entre as formas de ver, dizer e sentir que estavam dadas em uma unidade. A igualdade é a possibilidade do desequilíbrio e do desajuste da comunidade. Processo dialetizante em que a mobilidade da comunidade é necessária para que a presença de qualquer sujeito faça a diferença no que é a comunidade. A igualdade não se confunde assim com uma homogeneidade entre diferentes, mas com deslocamentos sensíveis entre diferentes afetando o espaço comum e as formas de ser e sentir de cada um.

domingo, 14 de agosto de 2016

Cecília Meireles



cântico VI 

tu tens um medo:
acabar.
não vês que acaba todo dia.
que morres no amor.
na tristeza.
na dúvida.
no desejo.
que te renovas todo dia.
no amor.
na tristeza.
na dúvida.
no desejo.
que és sempre outro.
que és sempre o mesmo.
que morrerás por idades imensas.
até não teres medo de morrer.

e então serás eterno.

domingo, 26 de junho de 2016

Milan Kundera



os testamentos traídos

Ah, é tão fácil desobedecer a um morto. Se, apesar disso, algumas vezes nos submetemos à sua vontade, não é por medo, por obrigação, é porque o amamos e nos recusamos a acreditar que está morto. Se um velho camponês pediu ao seu filho para não cortar a velha pereira diante da janela, a pereira não será cortada enquanto o filho lembrar de seu pai com amor.

Isto não tem muita coisa a ver com a fé religiosa na vida eterna da alma. Simplesmente, um morto que amo nunca estará morto para mim. Não posso nem mesmo dizer: eu o amei; não, eu o amo. E se me recuso a falar de meu amor por ele no tempo passado, isto quer dizer que aquele que está morto existe. É aí talvez que se encontra a dimensão religiosa do homem. Realmente, a obediência à última vontade é misteriosa: ela ultrapassa toda a reflexão prática e racional: o velho camponês nunca saberá, em seu túmulo, se a pereira foi ou não cortada; no entanto, é impossível para o filho que o ama não obedecer à sua vontade.

Em outros tempos, fiquei comovido (ainda fico) com o fim do romance de Faulkner, As palmeira selvagens. A mulher morre depois de um aborto mal-sucedido, o homem fica na prisão, condenado a dez anos; entregam-lhe em sua cela um comprimido branco, veneno; mas ele afasta depressa a ideia de suicídio, pois sua única maneira de prolongar a vida da mulher amada é guardá-la em sua lembrança.

"... Quando ela deixou de existir, a metade da lembrança deixou igualmente de existir; se eu deixo de existir, então toda a lembrança também deixará de existir. Sim, pensou, entre a tristeza e o nada, é a tristeza que escolho."

Mais tarde, ao escrever O livro do riso e do esquecimento, mergulhei no personagem de Tamina, que perdeu seu marido e tenta desesperadamente encontrar e reunir as lembranças dispersas para reconstruir um ser desaparecido, um passado encerrado; foi então que comecei a compreender que, numa lembrança, não se encontra a presença do morto; as lembranças são apenas a confirmação de sua ausência; nas lembranças, o morto não é senão um passado que empalidece, que se afasta, inacessível.

No entanto, se é impossível para mim considerar morto o ser que amo, como irá se manifestar sua presença?

Em sua vontade, que conheço e à qual continuarei fiel. Penso na velha pereira que continuará diante da janela enquanto o filho do camponês estiver vivo.

domingo, 1 de maio de 2016

Milan Kundera



os testamentos traídos 

Tentem reconstruir um diálogo de sua própria vida, o diálogo de uma briga ou um diálogo de amor. As situações mais caras, as mais importantes, ficam perdidas para sempre. O que sobra delas é seu sentido abstrato (defendi esse ponto de vista, ele um outro, fui agressivo, ele defensivo), eventualmente um ou dois detalhes, mas o concreto acústico-visual da situação em toda a sua continuidade fica perdido.

E não apenas fica perdido, mas nem ao menos ficamos espantados com essa perda. Ficamos resignados com a perda do concreto no tempo presente. Transformamos de imediato o momento presente em sua abstração. Basta contar um episódio que vivemos há poucas horas: o diálogo se encolhe num breve resumo, o ambiente em alguns dados gerais. Isto é válido até mesmo para as lembranças mais fortes que, como um traumatismo, se impõem ao espírito: ficamos de tal modo fascinados por sua força que não nos damos conta a que ponto seu conteúdo é esquemático e pobre.

Se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade, a analisamos tal qual ela aparece em nosso espírito, em nossa memória. Só conhecemos a realidade do tempo passado. Não a conhecemos tal qual ela é no momento presente, no momento em que acontece, em que é. Ora, o momento presente não se parece com sua lembrança. A lembrança não é a negação do esquecimento. A lembrança é uma forma de esquecimento. 

Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma só imagem concreta. E, pior ainda: que imaginação não é capaz de socorrer nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente, como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória nem como reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Jia Zhang-ke




Dedicatória ao Festival Internacional do Filme Documentário de Yamagata 

Quando eu era menino, gostava de parar na rua para observar as pessoas. Os desconhecidos que iam e vinham despertavam em mim uma inexplicável sensação de afeto. Às vezes, eu me perguntava se a vida que levavam era igual à minha, se o quarto de dormir, a alimentação, os objetos sobre a mesa, as famílias, as preocupações deles eram semelhantes às minhas. A possibilidade de perder a curiosidade pelos outros me apavora. Realizar documentários me ajuda a superar esse temor. 

O homem perde facilmente o sentido de sua proximidade com os outros. Na verdade, o nosso mundo é povoado por pouquíssimas pessoas. O documentário pode alargar o nosso universo, romper a nossa solidão. E, o que é ainda mais importante, no momento da filmagem, o espírito de justiça e de coragem que ameaçava abandonar o meu corpo retorna. A filmagem me permite voltar a sentir a dignidade da existência de cada um, inclusive da minha. 

O cinema é uma maneira de preservar a memória das coisas. O documentário nos ajuda a conservar os traços daquilo que se passou. É um meio de resistir ao esquecimento.