domingo, 1 de dezembro de 2019

Ailton Krenak


ideias para adiar o fim do mundo

"Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício do ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos."

"Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores, e não em cidadãos. E nossas crianças, desde a mais tenra idade, são ensinadas a serem clientes. Não tem gente mais adulada do que consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentidos, numa plataforma para diferentes cosmovisões."

"Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito  grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhadas pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim." 

"É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros."

"Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados com a queda ? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.
Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além  de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente."

"Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades - as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que fomos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos. 

domingo, 29 de setembro de 2019

Carlos Drummond


mãos dadas

não serei o poeta de um mundo caduco.
também não cantarei o mundo futuro.
estou preso à vida e olho meus companheiros.
estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
entre eles, considero a enorme realidade.
o presente é tão grande, não nos afastemos.
não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Bell Hooks


olhares negros: raça e representação 

As audiências foram um lembrete brutal para as defensoras do feminismo - para todas nós que estamos preocupadas com agendas progressistas - de que as políticas conservadoras vão dominar a pauta se não houver protestos, subversão e rebelião suficientes. Muitos grupos, incluindo as feministas, foram convocados a agir por causa das audiências. Progressistas podem apenas desejar que o espírito da rebelião e da resistência não seja transitório, mas sirva para incentivar um clima de vigilância crítica e de ação radical que, mais uma vez, fará com que a transformação dessa cultura em uma sociedade realmente democrática e justa se torne uma pauta significativa, uma causa pela qual valha a pena lutar.

domingo, 21 de julho de 2019

23.


Acordar todo dia às 6h, tomar um café apressado, seguir para o trabalho, enfrentando o ainda leve congestionamento de Brasília, se comparado ao das outras capitais do Brasil. Ler as notícias, resolver questões burocráticas a pedido do chefe, gastar um tempo na internet, calcular se o dinheiro vai dar até o fim do mês. Almoçar correndo em um self-service barato. Passar mais uma tarde em frente ao computador. O leve congestionamento se repete na volta e você chega em casa cansado de um dia como outro qualquer. Conversa trivialidades com o cônjuge. Não dá muita atenção para o que as crianças falam. Lava a louça do jantar e senta para ver um pouco de televisão antes de dormir. É mais ou menos assim a rotina da maior parte das pessoas. Claro que as lacunas se completam com os mais diversos interesses e obrigações, com histórias de vida bem distintas. O que pretendo dizer é que, na maior parte do tempo, não damos muita atenção para o que acontece ao nosso redor. Imersos em nossas atividades cotidianas, dificilmente dispensamos um olhar mais cuidadoso para o que nos cerca. E quando digo isso, não me refiro somente ao hábito de manter momentos contemplativos, mas sim, ao ato de realmente fazer algum esforço de compreensão mais profundo da realidade, de conseguir desnaturalizar o nosso dia a dia e perceber que mesmo os atos mais banais refletem as estruturas sociais a culturais em que estamos imersos.

É preciso entender que o cotidiano não é um refúgio da história, mas sim parte
integrante dela. É no passar lento e gradual dos dias que conseguimos realmente visualizar as consequências dos grandes acontecimentos para a humanidade, caracterizar uma época e entender um pouco mais dos homens e mulheres que viveram (ou vivem) nela. Afinal, se formos parar para pensar, a maior parte de nossas vidas são compostas por atividades comuns. 

Adélia Prado



A Criatura

Quero ver Jonathan,
Aqui ou onde mora
Exilado de mim.
Está meio chuvoso e é domingo,
feito um domingo antigo,
quando Ormírio chegou com Antônia,
sua filha de criação,
e me deu um cacho de uvas.
Da mesma natureza é a saudade que sinto
por aquele domingo e por Jonathan.
Como Antônia era tola eu era feliz,
o eixo da terra girava devagar,
eu cantava
a propósito de tudo,
a música de que mais gostava.
Quando me apaixonei por Jonathan,
escrevia seu nome pela casa,
meu pai dizia: ‘o que é isso?’
é o nome de um príncipe, eu falava,
Pronuncia-se Narratanói e está nas
mil e uma noites…
Meu pai, plebeu
a quem certas palavras subjugavam,
orgulhava-se de mim
que lhe dava poder sobre os signos migrados.
Oh, Jonathan, descubro que te amo
desde o tempo da guerra,
quando os aliados batiam os alemães.
Vovô dizia usaliados
e até mamãe, imagine!
E principalmente eu:
‘usaliados’ vão ganhar a guerra’,
sabendo por divina inspiração:
‘o poder é de quem detém a palavra’.
Poder que ia usar contra você,
que teria minha mãe usado contra mim:
‘você é da classe operária,
ele é muito bonito,
vai te deixar sozinha!’
Não deixou minha mãe, como não me deixa
apesar dos pesares,
esta vocação para a alegria perfeita.
Vê, são passadas décadas
e é a mesma em mim
a prontidão para a chuva,
as goiabas verdes,
para o sol que ateia nos telhados
as labaredas brancas do meio-dia.
É como se estivésseis aqui
com meu pai, meu avô
Ormírio e o cacho de uvas,
como quando entoei impropriamente,
à véspera de um Natal o Tantum Ergo.
Que grande cortesã eu me ensaiava,
porque era uma orgia
aquela felicidade sobre nadas,
era tudo tão pobre.
Eu já amava Jonathan,
porque Jonathan é isto,
fato poético desde sempre gerado,
matéria de sonho, sonho,
hora em que tudo mais desce à desimportância.
Agora que me descido à mística,
escrevo sob seu retrato:
‘Jesus, José, Javé, Jonathan, Jonathan,
a flor mais diminuta é meu juiz.
Me deixem no deserto resgatada,
pedra que dentro é pedra,
sobre pedra pousada’.
Rimo por boniteza,
não é triste o que sinto.
‘A supliciada’ podíeis chamar a tais versos,
no entanto, confirmo, estou feliz,
feliz para o desperdício
do que busquei amealhar
e estava certa,
o que o tempo não rói.
Um mel derrama-se,
uma ave amorosa me alimenta.
Negro céu com relâmpagos
e esta doçura que não tem repouso.
São feitos para mim estes legumes,
mais que as flores são feitos para mim
que os converto no ventre em ouro simbólico.
Nada há mais parecido com o que sou
a não ser outro homem e outro mais
e mais outro homem.
A visão de um recém-nascido me transporta.
Experimento dizer: ‘dentro da terra
sobre os leitos de areia os lençóis d’água’;
é como ferir o peito com uma lança
estremeço de amor pelas torrentes,
como de amor por Jonathan.
Os peixes gostam de mim, os fetos.
Antes que o façam eu abraço os homens,
eu os desarmo,
como a abelha em seu afinco
trabalho para que entendam:
a vida é tão bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Os espíritos imundos confessavam o Cristo,
se enfiavam nos porcos confessando,
essa alegria nova me confessa,
a mesma, a antiga,
a de quando ganhei as uvas e chovia
e gostava de Antônia
aquela menina tola.
‘A ira bordeja como um peixe mau’
É só um verso bonito.
Não há como voltar deste país:
o homem à  janela canta
– sem ter costume – a melodiazinha.
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guimarães Rosa


grande sertão: veredas 

"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!"

"Moço: toda saudade é uma espécie de velhice."

"Estremeço. Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!"

"Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

"No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso."

"O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente - 'Diadorim, meu amor...' Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vegornha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas - como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só pra mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com a minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim - que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar as coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas - de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava."

segunda-feira, 20 de maio de 2019

22.



toda despedida
encerra em mim
uma oração

pequena
mas solene
diante de tudo
que é frágil

a vida
utopia
seria sempre
ventania
passa forte
leva pra frente

mas ela,
povoada de tudo o que é real,
também lembra
que é sopro
sussurro
esvazia
perde a batalha
para o adeus


[somos breves
mas cuidemos
não podemos parar
de ventar]

terça-feira, 2 de abril de 2019

Ryane Leão


tudo nela brilha e queima

eu sou um monte de
constelações
brilhando e ardendo
mas nem todo mundo
sabe ver

ou só vê a parte que arde
ou só vê a parte que brilha