terça-feira, 12 de novembro de 2013

Wislawa Szymborska



autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca. 


...

em perigo, a holotúria se divide em duas:
com uma metade se entrega à voracidade do mundo, 
com outra foge.

desintegra-se violentamente em ruína e salvação,
em multa e prêmio, no que foi e no que será.

no meio do corpo da holotúria se abre um abismo
com duas margens subitamente estranhas.

em uma margem a morte, na outra a vida.
aqui o desespero, lá o alento.

se existe uma balança, os pratos não oscilam.
se existe justiça, é esta.

morrer só o necessário, sem exceder a medida.
regenerar quanto for preciso da parte que restou.

também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
mas somente em corpo e sussurro interrompido.
em corpo e poesia.

de um lado garganta, do outro o riso,
leve, logo sufocado.

aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,
três palavrinhas apenas como três penas em voo.

o abismo não nos divide.
o abismo nos circunda.