sexta-feira, 25 de abril de 2014

Adélia Prado




casamento 

há mulheres que dizem:
meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
eu não. a qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
é tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

o silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

8.



curtinhas 

pra esquecer você
só precisei lembrar
quem sou eu 

*** 

não vim de lugar comum
pra saber 
onde vou chegar

segunda-feira, 21 de abril de 2014

7.




apenas algumas invenções habituais do ser humano em busca de um sentido para a vida

A noite está bonita e fresca. Um céu limpo, com tons mais avermelhados do que negros, revela indícios de que o universo é muito maior do que qualquer vida na Terra. A luz das estrelas invade a escuridão e atiça a lembrança de uma beleza que já se foi. Muitas vezes, nem a velocidade da luz é suficiente para trazer o brilho de algo enquanto ele ainda existe. Aquela estrela está realmente lá? Não sei. Mas, de alguma forma, continua a iluminar o cotidiano dos homens. A memória também aquece. 

Eu ainda gosto de caminhar à noite. A ausência não carregou o antigo hábito, que se consolidou na presença de um outro. Muito pelo contrário, ela mostrou algo que era meu. O meu olhar nota com clareza que o mundo é cheio de coisas infinitamente grandes e de coisas infinitamente pequenas. O mundo está para quem o quer ver. Ingenuamente, acreditamos necessitar sempre de ajuda para isso. Alguma lente de aumento, o silêncio das montanhas, as sábias palavras de um grande pensador, a exatidão científica, a companhia aconchegante daquele que um dia cruzou o seu caminho. Inseguros, não percebemos que temos tudo o que precisamos. 

O outro é palco para encontros e descobertas. De nós mesmos só sabemos aquilo que nos é posto à prova. E a provocação costuma vir de um outro. Entre tantos, alguns marcaram mais. O primeiro foi porto seguro. Sabia que com ele sempre receberia muito cuidado e, por isso, precisei ir. Mas ele foi o primeiro voto de confiança nessa caminhada. Veio a paixão, a devoção de dois corpos e almas que sabem se entregar. E a certeza de um amor que consegue mudar para permanecer. Depois, surgiu aquele encantamento súbito, que teve vida como amizade, mas que ainda verte-se de carinho nas noites mais solitárias. Existiu aquele do cotidiano amoroso íntimo e improvisado; entremeado pela violência que nunca perdoou a vontade de manter minha história viva. Os carinhos e experiências compartilhados por tantos anos, que imaginávamos que nunca fossem acabar, tiveram um final aterrador. Mais uma certeza que se cai. Nem sempre o amor permanece. O mais recente não foi mais do que uma promessa. O desejo de adentrar novamente a quitinete simples, com cortinas descascadas, por onde vazam os raios de sol que realçam a fumaça do cigarro que ele fuma ansioso na cadeira de balanço. Cada um inesquecível ao seu modo, parte inevitável daquilo que sou hoje. 

Recomeço é me perceber diante de cada um que passou. O prazer de caminhar à noite é meu, embora com você tenha sido muito bom. A temperatura amena, as horas que passam mais devagar ainda me acalmam. Mesmo que não o tenha mais ao meu lado. O chá de gengibre também não perdeu o seu sabor e suas propriedades medicinais por não ser ele quem o faz. O verso roubado ganhou um novo sentido: resta ainda tudo / só nós não podemos ser. Mas o tudo que resta é tanto. É a crença no amor que se restabelece. É a história que vivo e sei contar. Memória aquece quando você percebe que ela é sua. O brilho da estrela que não mais existe continua a iluminar.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Carlos Drummond de Andrade



ausência

por muito tempo achei que a ausência é falta.
e lastimava, ignorante, a falta.
hoje não a lastimo.
não há falta na ausência.
a ausência é um estar em mim.
e sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.