quinta-feira, 29 de maio de 2014

9.



insurgência
 
gosto desse invulgar encontro
onde meus braços viram tuas pernas
minha boca tua nuca
tuas coxas minha língua
tua voz em minha pele
 
entre nós
nada mais é secreto
somos um todo
tudo incerto
coração a ermo
na certa, perde-se
 
[um dia, você pediu que eu não me rebelasse
fui desarmada
mas desobedeci]

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Alice Ruiz e Itamar Assumpção



milágrimas

em caso de dor, ponha gelo
mude o corte do cabelo
mude como modelo
vá ao cinema, dê um sorriso
ainda que amarelo
esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido
troque já este vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério, deixe os critérios
siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada milágrimas sai um milagre
em caso de tristeza vire a mesa
coma só a sobremesa
coma somente a cereja
jogue para cima, faça cena
cante as rimas de um poema
sofra apenas, viva apenas
sendo só fissura, ou loucura
quem sabe casando cura
ninguém sabe o que procura
faça uma novena, reze um terço
caia fora do contexto, invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre
mas se apesar de banal
chorar for inevitável
sinta o gosto do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre
a cada milágrimas sai um milagre

Rainer Maria Rilke



cartas a um jovem poeta 

maio 14, 1904, Roma

amar também é bom:
porque o amor é difícil.
o amor de duas criaturas humanas
talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta,
a maior e última prova,
a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação.
por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo,
não sabem amar: tem que aprendê-lo.
como todo o seu ser,
com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário,
medroso e palpitante,
devem aprender a amar.
mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura.
assim, para quem ama,
o amor,
por muito tempo e pela vida afora,
é solidão,
isolamento cada vez mais intenso e profundo.
o amor, antes de tudo,
não é o que se chama entregar-se,
confundir-se, unir-se a outra pessoa.
que sentido teria, com efeito,
a união com algo não esclarecido,
inacabado, dependente?
o amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer,
tornar-se algo em si mesmo,
tornar-se um mundo para si,
por causa de um outro ser;
é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz,
uma escolha e um chamado para longe.
do amor que lhes é dado,
os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos.
a fusão com o outro, a entrega de si,
toda espécie de comunhão não são para eles;
são algo de acabado para o qual,
talvez, mal chegue atualmente a vida humana.
creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso
em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão
profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou sua vida.

terça-feira, 20 de maio de 2014

André Gorz



carta a d. 

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.

Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traître, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver.

Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes? Por que eu não disse o que me fascinou em você? Por que eu a apresentei como uma coitadinha, "que não conhecia ninguém, não falava uma palavra de francês e que sem mim teria se destruído", se você tinha o seu círculo de amigos, fazia parte de um grupo de teatro de Lausanne e era esperada na Inglaterra por um homem determinado a se casar com você?

Na verdade, não explorei em profundidade aquilo a que me propunha ao escrever Le Traître. Para mim, ainda restam muitas questões a serem compreendidas e esclarecidas. Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro, um para o outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.

Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda das inglesas.

Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção. Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is an Austrian Jew. Totally devoid of interest".

Um mês depois cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947. 

Meu inglês era desajeitado, mas passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída, percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf, George Eliot, Tolstói, Platão...

Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos.

De onde você tirava essa segurança? E, no entanto, você também teve pais separados; deixou-os cedo, um depois do outro; nos últimos anos da guerra, morou sozinha com Tabby, o seu gato, e dividia com ele a sua comida racionada. E, por fim, saiu do seu país para explorar outros mundos. Em que poderia lhe interessar um Austrian Jew sem um tostão?

Eu não entendia. Não sabia que ligações invisíveis se teciam entre nós. Você não gostava de falar do seu passado. Pouco a pouco, compreenderei que experiência fundadora nos tornou subitamente próximos um do outro.

Nos encontramos de novo. Fomos dançar mais uma vez. Vimos juntos Le Diable au corps, com Gérard Philipe. Há no filme uma seqüência em que a heroína pede ao sommelier para trocar uma garrafa de vinho já aberta e bem consumida porque, segundo ela, dava para sentir o gosto da rolha. Tentamos reeditar essa manobra numa boate, e o sommelier, depois de verificar, contestou o diagnóstico. Diante de nossa insistência, ele nos mandou às favas, com muita determinação: "Nunca mais ponham os pés aqui!". Fiquei espantado com o seu sangue-frio e a sua sem-cerimônia. Pensei comigo mesmo: "Fomos feitos para nos entendermos". Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você.

Não tínhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura.

Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.