quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Alain de Botton



a arte de viajar 

I. da expectativa

"Se nossa vida fosse dominada por uma busca da felicidade, talvez poucas atividades fossem tão reveladoras da dinâmica dessa demanda - em todo o seu ardor e seus paradoxos - como nossas viagens. Elas expressam - por mais que não falem - uma compreensão de como poderia ser a vida, fora das restrições do trabalho e da luta pela sobrevivência. No entanto, é raro que se considere que apresentem problemas filosóficos - ou seja, questões que exijam reflexão além do nível prático. Somos inundados de conselhos sobre os lugares aonde devemos ir, mas ouvimos pouquíssimo sobre por que e como deveríamos ir - se bem que a arte de viajar pareça sustentar naturalmente uma série de perguntas nem tão simples nem tão triviais, e cujo estudo poderia contribuir modestamente para uma compreensão do que os filósofos gregos denominaram pelo belo termo eudaimonia ou desabrochar humano."

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"Se somos propensos a esquecer tudo o que há no mundo além daquilo que prevemos, talvez as obras de arte tenham um pouco de culpa, pois nelas encontramos em atividade o mesmo processo de simplificação ou seleção que atua na imaginação. Os relatos artísticos envolvem abreviações radicais daquilo que a realidade nos impingirá. (...) O fato, porém, é que nunca se viaja simplesmente uma tarde inteira. Estamos sentados num trem. Dentro de nós, é estranha a digestão do almoço. O tecido do estofamento é cinza. Olhamos pela janela para um campo. Voltamos a olhar para o interior do trem. Uma quantidade de ansiedades gira pelo consciente. Percebemos uma etiqueta identificadora colada numa mala no porta-bagagens acima dos bancos à nossa frente. Tamborilamos no peitoril da janela. Um pedaço de fio fica preso numa unha quebrada num dedo indicador. Começa a chover. Uma gota  abre um caminho enlameado na janela suja de pó. Ficamos pensando onde poderá estar nossa passagem. Voltamos a olhar para o campo. Continua a chover. Afinal, o trem começa a se movimentar. Passa por uma ponte de ferro, e em seguida pára de modo inexplicável. Uma mosca pousa na janela. E ainda assim poderíamos ter chegado somente ao final do primeiro minuto de um relato abrangente dos acontecimentos que se ocultam por trás da frase enganosa 'ele viajou a tarde inteira'.

Um contador de histórias que nos fornecesse tamanha profusão de detalhes rapidamente provocaria exasperação. Infelizmente, a própria vida costuma assumir esse modo de narração, deixando-nos exaustos com repetições, ênfases equivocadas e enredos incoerentes. Ela insiste em nos mostrar Bardak Electronics, a alça de segurança no carro, um cachorro sem dono, um cartão de Natal e uma mosca que primeiro pousa na borda e depois no centro de um cinzeiro sobrecarregado.

E isso explica o curioso fenômeno pelo qual pode ser mais fácil experimentar os elementos valiosos na arte e na expectativa que na realidade. A imaginação artística e da expectativa omitem e comprimem. Elas eliminam os períodos de tédio e direcionam nossa atenção para os momentos críticos. Desse modo, sem mentir nem enfeitar a verdade, elas conferem à vida uma vivacidade e coerência que lhe pode faltar na confusão indistinta do presente."

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