domingo, 6 de dezembro de 2015

Charles Baudelaire

 

o pintor da vida moderna

Quando, enfim, encontrei-o, vi imediatamente que me defrontava não exatamente com um artista, mas, antes, com um homem do mundo. Entendam aqui, suplico-lhes, a palavra artista num sentido muito restrito, e a expressão homem do mundo num sentido amplo. Homem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus usos; artista, isto é, especialista, homem preso à sua palheta como o servo à sua gleba. O Sr. G. não gosta de ser chamado de artista. Não tem ele um pouco de razão? Ele se interessa pelo mundo inteiro; quer saber, compreender, apreciar tudo o que se passa na superfície de nosso esferóide. O artista vive muito pouco, ou mesmo nada, no mundo moral e político. O que mora no quartier Breda ignora o que se passa no faubourg Saint-Germain. Salvo dias ou três exceções que não vale a pena mencionar, os artistas, em sua maioria, são, é preciso dizê-lo, uns brutos muito hábeis, simples trabalhadores braçais, inteligências interioranas, mentalidades de arrebalde. sua fala, forçosamente limitada a um círculo bastante estreito, torna-se muito rapidamente insuportável para o homem do mundo, para o cidadão espiritual do universo. 
Assim, para chegar a compreender o Sr. G., tomem imediatamente nota disso: a curiosidade pode ser considerada como o ponto de partida de seu gênio.

domingo, 29 de novembro de 2015

Gonçalo Tavares

 


o homem mal-educado 

O MAL-EDUCADO não tirava o chapéu  em nenhuma situação. Nem às senhoras quando passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja. 
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os anos esta agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.
No dia em questão, colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu. 
Todos aguardavam. 
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou. 
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça. 
Aproximaram-se, então, para finalmente arrancarem o chapéu àquele mal educado. Mas não conseguiram. 
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho. 

sábado, 14 de novembro de 2015

João Moreira Salles



a dificuldade do documentário 

"O cinema é a única arma que possuo para mostrar ao outro como eu o vejo. (Jean Rouch)

De modo geral, desde Flaherty, podemos dizer que todo documentário encerra duas naturezas distintas. De um lado, ele é o registro de algo que aconteceu no mundo; de outro lado, é narrativa, uma retórica construída a partir do que foi registrado. Nenhum filme se contenta em ser apenas registro. Tem sempre também a ambição de ser uma história bem contada. A camada retórica que se sobrepõe ao material bruto, esse modo de contar o material, essa oscilação entre documento e representação, constituem o verdadeiro problema do documentário. Nossa identidade está intimamente ligada ao convívio complicado dessas duas naturezas.

É útil aqui fazer uma distinção entre compreensão não-ficcional e artefato não-ficcional. A compreensão não-ficcional nos permite perceber o que há de indicial em toda imagem, até mesmo naquelas que pertencem ao campo da ficção. Já o artefato não-ficcional — e o documentário certamente é um deles — independe dos usos individuais que se façam dele. Ele é uma convenção, um fenômeno social. É possível que, numa aula a respeito das técnicas vocais de atrizes americanas durante os anos de ouro do musical americano, O mágico de Oz possa ser analisado como documentário, mas seria um erro conceitual classificá-lo assim. Ele é, e será sempre, um filme de ficção no qual as pessoas cantam. É a história do cinema que diz assim. Por sua vez, Nanook do Norte nunca deixará de ser um documentário.

Uma pessoa filmada por mim é um conjunto de imagens partidas: primeiro, a pessoa vista, ao alcance da mão, do olfato, da audição; um rosto percebido na escuridão do visor; uma lembrança, às vezes fugidia, às vezes de uma clareza lapidar; um conjunto de fotogramas numa ilha de edição; algumas fotografias; e finalmente a figura se movendo na tela do cinema. (David MacDougal)

MacDougal lembra que, uma vez pronto, o filme representa, para o espectador, tudo; já para o diretor, representa muito pouco. Para ele — que teve o personagem diante de si, que respirou o mesmo ar da sala em que se encontraram; que sentiu com ele frio, se estava frio, ou calor, se estava calor; que riu, se interessou ou se aborreceu com o que foi dito —, o filme é uma redução da complexidade, uma diminuição da experiência. Ou, para sermos mais otimistas, é, no mínimo, a construção de uma outra experiência. Nela, a pessoa, cada vez mais distante, cede lugar a algo próximo, o personagem. Ao longo desse processo em que uma pessoa é transformada em personagem, inevitavelmente dados vão sendo perdidos. A falta do aperto sincero de mão quando chegamos sonega a informação de que o personagem foi gentil, e assim também a água oferecida, ou o café que foi buscar na cozinha. Todo diretor, quando mostra seu filme na televisão de casa, tem necessidade de falar: “Logo depois desse corte ele disse...”; “Isso foi logo depois que chegamos”; “Nessa hora passou um avião e tivemos que interromper”; “Aqui ele começou a perceber que precisávamos terminar”; “Ela nos recebeu assim mesmo, toda arrumada, pintou-se...”. 

Nós sabemos que a pessoa só poderá se definir durante os poucos momentos em que a câmera estiver ligada. Ela não sabe.

Depois de algumas semanas na ilha de edição, o diretor se torna refém do filme. A compreensão do tema impõe suas prioridades e a estrutura conduz a narrativa por caminhos determinados, nos quais certos desvios se revelam impraticáveis. É com pena que o documentarista abandona todos esses outros filmes hipotéticos. São possibilidades não realizadas, derrotadas pela lógica do filme e por exigências da estrutura. O paradoxo é este: potencialmente, os personagens são muitos, mas a pessoa filmada é uma só. Aqui, precisamente, reside, para mim, a verdadeira questão do documentário. Sua natureza não é estética, nem epistemológica. É ética." 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Wislawa Szymborska




nota de agradecimento

debo mucho
a quienes no amo.

el alivio con que acepto
que son más queridos por otro.

la alegría de no ser yo
el lobo de sus ovejas.

estoy en paz con ellos
y en libertad con ellos,

y eso el amor ni puede darlo
ni sabe tomarlo.

no los espero
en un ir y venir de la ventana a la puerta.
paciente
casi como un reloj de sol
entiendo
lo que el amor no entiende;
perdono
lo que el amor jamás perdonaría.

desde el encuentro hasta la carta
no pasa una eternidad,
sino simplemente unos días o semanas.

los viajes con ellos siempre son un éxito,
los conciertos son escuchados,
las catedrales visitadas,
los paisajes nítidos.

y cuando nos separan
lejanos países
son países
bien conocidos en los mapas.

es gracias a ellos
que yo vivo en tres dimensiones,
en un espacio no-lírico y no-retórico,
con un horizonte real por lo móvil.

ni siquiera imaginan
cuánto hay en sus manos vacías.

"no les debo nada",
diría el amor
sobre este tema abierto.

domingo, 1 de novembro de 2015

Adélia Prado



amor feinho 

eu quero amor feinho.
amor feinho não olha um pro outro.
uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
tudo que não fala, faz.
planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
amor feinho é bom porque não fica velho.
cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Bill Bryson



em casa - uma breve história da vida doméstica 

(...) que a maior parte da história é realmente isto: as massas humanas fazendo suas atividades comuns. Até mesmo Einstein deve ter passado grandes trechos da vida pensando nas férias, ou no que comeu no jantar, ou no gracioso tornozelo da moça que descia do bonde do outro lado da rua. São coisas desse tipo que preenchem a nossa vida e os nossos pensamentos; e, no entanto, nós a tratamos como incidentais e indignas de séria consideração. Não sei quantas horas dos meus anos de escola foram gastas estudando o Compromisso do Missouri ou a Guerra das Rosas; mas foi imensamente mais do que me incentivaram ou permitiram dedicar à história do comer, dormir, fazer sexo e tentar se divertir.
Pensei, então que poderia ser interessante escrever um livro sobre as coisas comuns da vida - finalmente observá-las e tratá-las como se elas também fossem importantes. Observando a minha casa, fiquei surpreso e um pouco chocado ao perceber como eu sabia pouco sobre o mundo doméstico ao meu redor. Sentado à mesa da cozinha certa tarde, brincando distraidamente com o saleiro e o pimenteiro, ocorreu-me que eu não fazia a menor ideia do porquê, entre todas as especiarias do mundo, temos um apego tão duradouro a essas duas. Por que não pimenta e cardamomo, digamos? 
(...) O que descobri, para a minha grande surpresa, é que tudo que acontece no mundo - tudo que é descoberto, ou criado, ou ferrenhamente disputado - vai acabar, de uma forma ou de outra, na casa das pessoas. As guerras, as fomes, a Revolução Industrial, o Iluminismo - tudo isso está lá, no seu sofá e na sua cômoda, escondido nas dobras das suas cortinas, na maciez dos seus travesseiros, na tinta das suas paredes, na água das suas tubulações. Assim, a história da vida doméstica não é apenas uma história de camas, sofás e fogões, como eu vagamente supunha, mas sim do escorbuto e do guano, da Torre Eiffel e dos percevejos, dos ladrões e de cadáveres e de mais ou menos tudo o que já aconteceu. As casas não são refúgios contra a história. É nelas que os fatos históricos vão desembocar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Mia Couto



poema da despedida
  
não saberei nunca
dizer adeus
 
afinal,
só os mortos sabem morrer
 
resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
 
talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
 
não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
 
agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
 
nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
ainda assim,
escrevo

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Bill Nichols



introdução ao documentário 

Dito de outra forma, os documentários normalmente contêm uma tensão entre o específico e o geral, entre momentos únicos da história e generalizações. Sem a generalização, os documentários em potencial seriam pouco mais do que registros de acontecimentos e experiências específicas. E se não fossem nada além de generalizações, seriam pouco mais do que tratados abstratos. É a combinação das duas coisas, dos planos e cenas individuais que nos colocam num determinado tempo e lugar, e a organização desses elementos em um todo maior, que dão poder e fascínio ao vídeo e ao filme documentário. 

[...]

A seleção e o arranjo de sons e imagens são sensuais e reais; proporcionam uma forma imediata de experiência auditiva e visual, mas também se tornam, por intermédio da organização num todo maior, uma representação metafórica do que seja uma determinada coisa no mundo histórico. 

[...]

Pode ser que conheçamos a definição de dicionário para essas práticas sociais e, ainda assim, desejemos representações metafóricas para nos ajudar a compreender que valores associar a essas práticas sociais. Os documentários nos dão a sensação de que podemos entender como os outros atores sociais experimentam situações e acontecimentos que se encaixam em categorias familiares (vida familiar, assistência médica, orientação sexual, justiça social, morte e assim por diante). Os documentários proporcionam uma orientação sobre a experiência de outros e, por extensão, sobre as práticas sociais que compartilhamos com eles. 

Se aceitaremos como os nossos os pontos de vista e os argumentos dos documentários, isso depende muito do poder estilístico e retórico do filme. A oscilação entre o específico e o geral no documentário, entretanto, resulta da eficácia da permissão para que uma representação específica signifique (metaforicamente) uma orientação ou avaliação geral de uma determinada questão ou tema. A compreensão metafórica é muitas vezes a maneira mais significativa e persuasiva de nos convencer do mérito de um ponto de vista em relação a outros. 

[...]

Nos documentários, portanto, falamos de assuntos que ocupam nossa vida da forma mais apaixonada e perturbadora. Esses assuntos seguem os caminhos de nosso desejo, conforme chegamos a um acordo com o que significa assumir uma identidade, ter uma ligação íntima e particular com alguém e pertencer a uma coletividade. Identidade pessoal, intimidade sexual e pertença social são outra maneira de definir os assuntos do documentário. 

[...] 

O interesse desses cineastas e escritores não era abrir um caminho livre e desobstruído para o desenvolvimento de uma tradição documental que ainda não existia. Seu interesse e sua paixão eram a exploração dos limites do cinema, a descoberta de novas possibilidades e de formas ainda não experimentadas. O fato de alguns desses trabalhos terem se consolidado no que hoje denominamos documentário acaba por obscurecer o limite indistinto entre ficção e não-ficção, documentação da realidade e experimentação da forma, exibição e relato, narrativa e retórica, que estimularam esses primeiros esforços. A continuação dessa tradição de experimentação foi o que permitiu que o documentário permanecesse um gênero ativo e vigoroso. 

Uma forma corrente de explicar a ascensão do documentário inclui a história do amor do cinema pela superfície das coisas, sua capacidade incomum de captar a vida como ela é; capacidade que serviu de marca para o cinema primitivo e seu imenso catálogo de pessoas, lugares e coisas recolhidas em todos os lugares do mundo. Como a fotografia antes dele, o cinema foi uma revelação. As pessoas nunca tinham visto imagens tão fiéis a seus temas nem testemunhado movimento aparente que transmitisse sensação tão convincente de movimento real.

[...]

Assim como um conjunto mutável de circunstâncias, o desejo de propor maneiras diferentes de representar o mundo também contribui para a formação de cada modo. Modos novos surgem, em parte, como resposta às deficiências percebidas nos anteriores, mas a percepção da deficiência surge, em parte, da ideia do que é necessário para representar o mundo histórico de uma perspectiva singular num determinado momento.  

[...]

Fazemos bem em aceitar com reservas quaisquer afirmações de que um modo novo faz progredir a arte cinematográfica e capta aspectos do mundo como jamais foi possível. O que muda é o modo de representação. Um modo novo não é melhor, ele é diferente, embora a ideia de "aperfeiçoamento" seja frequentemente alardeada, especialmente entre os defensores e praticantes de consequências, e, por sua vez, acabará se mostrando vulnerável à crítica pelas limitações que um outro modo de representação prometa ultrapassar. Modos novos sinalizam menos uma maneira melhor de representar o mundo histórico do que uma forma dominante de organizar o filme, uma nova ideologia para explicar nossa relação com a realidade um novo conjunto de questões e desejos para inquietar o público.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Tjiske Jansen



para os anos dele

sei qual é cor em que prefere calçar-se.
sei qual é a cor em que prefere vestir-se.

porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.

portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir,
qual é a tua cor preferida para acordar?

a cor dos teus olhos, respondeu-me. a cor da tua pele.
não fui à procura. não necessito de andar à procura para saber que
não existe nenhuma loja que venda edredões nessas cores.
não há outra solução a não ser dormir
com ele para sempre.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Adélia Prado



ensinamento 

minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
não é.
a coisa mais fina do mundo é o sentimento.
aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“coitado, até essa hora no serviço pesado”.
arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
não me falou em amor.
essa palavra de luxo.

Adélia Prado


para o zé 

eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
divago, quando o que quero é só dizer
te amo. teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. esmero. pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
aprendo. te aprendo, homem. o que a memória ama
fica eterno. te amo com a memória, imperecível.
te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: deus é amor. você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

domingo, 5 de julho de 2015

Norbert Elias



Que ato do destino terá promovido o desenvolvimento das estruturas biológicas que facultaram aos descendentes humanos dos animais conquistarem o autodistanciamento necessário para aprenderem a falar e a dizer "eu" a respeito de si mesmos? E mais, que ato do destino terá permitido que os rostos relativamente impassíveis de nossos antepassados animais se transformassem nos rostos extraordinariamente móveis e individualizáveis que figuram entre os traços biológicos singulares do homem? 
Não conhecemos esses atos do destino. Não sabemos que circunstâncias peculiares, ao longo de milhões de anos, levaram os seres humanos a serem, ao que saibamos, a única espécie de organismo a adquirir um equipamento biológico que tornou não apenas possível, mas necessário, poder produzir e compreender, como seu principal meio de comunicação, configurações sonoras que diferiam de grupo para grupo. Tampouco sabemos até agora que acontecimentos repetitivos, durante milhões de anos, terão levado aos seres humanos a serem biologicamente dotados de uma fisionomia altamente individualizável, com uma musculatura facial dúctil, capaz de assumir marcas diferentes conforme a experiência individual. Mas os eventos dessa evolução são claramente compreendidos. Os seres humanos são os únicos organismos até hoje conhecidos a usarem um meio de comunicação primordial que é específico da sociedade e não específico da espécie, e são também a única espécie, dentre as que conhecemos, dotada de uma parte do corpo tão apta a trazer uma  marca individual diferente que, por meio dela, centenas de indivíduos são capazes, por longos períodos, e muitas vezes pela vida inteira, de reconhecerem uns aos outros como tais, como indivíduos diferentes.

sábado, 27 de junho de 2015

21.



a memória do outro
é alívio apenas presumido
você sabe que ele se lembra
mas nunca o quanto se esquece

terça-feira, 16 de junho de 2015

Norbert Elias



Os exemplos mais simples da natureza multifacetada da consciência no extremo oposto do desenvolvimento humano até o momento encontram-se, provavelmente, em algumas áreas da literatura. Podemos pensar no desenvolvimento do romance desde a segunda metade do século XIX. Nos textos em prosa dos séculos anteriores - e certamente, não apenas nos textos em prosa-, o escritor mostrava-se predominantemente preocupado em dizer ao leitor o que as pessoas faziam, o que acontecia. Gradativamente, a atenção passou a se concentrar não apenas na narração dos acontecimentos, mas em como as pessoas os vivenciavam. Os autores descreviam uma paisagem, por exemplo,  e ao mesmo tempo , a chamada "paisagem interior", no sentido mais estrito ou mais amplo do termo - le paysage intérieur. Descreviam encontros entre as pessoas e, ao mesmo tempo, o "fluxo de consciência" delas ao se encontrarem. Mas, quaisquer que fossem os slogans usados, a mudança que se expressou na literatura de modo algum se restringiu a esta. A especial sensibilidade dos escritores permitiu-lhes, como uma espécie de vanguarda da sociedade, perceber e expressar mudanças que estavam ocorrendo no campo mais amplo das sociedades em que viviam. Não fosse assim, eles não teriam encontrado leitores que os compreendessem e apreciassem. Essas formas literárias constituem, na verdade, testemunhos da lenta ascensão, que pode ser observada em diversas sociedades, para um outro nível de consciência. E a presente discussão, a rigor, não é outra coisa senão uma tentativa de levar avante a descrição dessa nova etapa de autoconsciência e da imagem humana que pouco a pouco desponta no horizonte, juntamente com o que as pessoas descobrem de novo a respeito de si mesmas como indivíduos, sociedades e formações naturais.

domingo, 14 de junho de 2015

20.



a gente se encontra 
[no mais tardar,
na lembrança 
do que nunca se esquece]

terça-feira, 9 de junho de 2015

Hans Borli



uma coisa é necessária

uma coisa é necessária – aqui
neste nosso mundo díficil
de sem-abrigos e desterrados:

fixares residência em ti.

entra pela escuridão
e limpa a fuligem da lâmpada.

para que as pessoas na estrada
possam entrever uma luz
em teus olhos habitados.

(1974)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Rainer Maria Rilke



Sou apenas um de vossos mais humildes monges,
fitando de minha cela a vida lá fora,
das pessoas mais distante que das coisas

Não me julgueis presunçoso se digo:
Ninguém realmente vive sua vida.
As pessoas são acidentes, vozes, fragmentos,
medos, banalidades, muita alegria miúda,
já crianças, envoltas em dissimulação,
quando adultas, máscaras; como rostos – mudas.

Penso muita vez: deve haver tesouros
onde se armazenam todas essas muitas vidas,
como armaduras ou liteiras, berços
que nunca portaram alguém francamente real,
vidas qual roupas vazias que não se sustentam
de pé e, despencando, agarram-se
às sólidas paredes de pedra abobadada.

E quando à noite vagueio
fora de meu jardim, imerso em tédio,
sei que os caminhos todos que se estendem
levam ao arsenal de coisas não vividas.

Não há árvore ali, como se a terra se guardasse
e como ao redor da prisão ergue-se o muro,
sem janela alguma, em seu sétuplo anel.
E seus portões, de trancas de ferro,
que repelem os que querem passar,
têm suas grades todas feitas por mãos humanas.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Jorge Luis Borges



funes, o memorioso

"Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o podemos esquecer, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; incomodava-o que o cachorro das três horas e catorze minutos (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cachorro das três e quinze (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez. Relata Swift que o imperador de Lilliput podia discernir o movimento do ponteiro de minutos; Funes discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, do cansaço. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso. A Babilônia, Londres e Nova York pesaram com feroz esplendor sobre a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas urgentes avenidas, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão inexaurível como a que a noite e dia convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre arrabalde sul-americano. Para ele, dormir era muito difícil. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, ficava imaginando cada greta e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (Repito que o menos importante em suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico.) Para o leste, num trecho de quarteirão incompleto, havia casas novas, desconhecidas. Funes imaginava-as pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção voltava o rosto para dormir. Também costumava se imaginar no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente. 

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

A tímida claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi a cara da voz que havia falado a noite toda. Ireneo tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada uma de minhas atitudes) perduraria em sua implacável memória; tolheu-me o temor de multiplicar gestos inúteis. 

Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar."

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Wislawa Szymborska



repenso o mundo 

repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente, 
aos cães botas.

eis um capítulo: a fala dos bichos e das plantas, 
com um glossário próprio 
para cada espécie. 
mesmo um simples bom dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
essa épica das corujas!
esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

o tempo (capítulo dois)
tem o direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má. 
porém - ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está 
presente na órbita das estrelas, 
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado. 

a velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
ah, então todos são jovens!
o sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
a morte
chega com o sono.

e vais sonhar
que nem é preciso respirar, 
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

morrer, só assim. dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão. 

o mundo, só assim. só assim
viver. e morrer só esse tanto.
e todo o resto -  é como Bach
tocado por um instante
num serrote.

sábado, 2 de maio de 2015

Hannah Arendt



a condição humana 

"a única solução possível para o problema da irreversibilidade - a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia - é a faculdade de perdoar. a solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas. as duas faculdades são aparentadas, pois a primeira delas - perdoar - serve para desfazer os atos do passado, cujos "pecados" pendem como a espada de Dâmocles sobre cada nova geração; a segunda - obrigar-se através de promessas - serve para criar, no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de segurança, sem as quais não haveria continuidade, e menos ainda durabilidade de qualquer espécie, nas relações entre os homens."

sábado, 11 de abril de 2015

18.


esperança

outro dia, passei embaixo da tua janela. 
e foi tão fácil lembrar de você. 
a memória foi,
solta 
como a menina que saltava do carro, 
apressada de tanta paixão, 
e se punha a chamar teu nome. 
por mais que você nunca demorasse, 
o descanso só vinha com teus olhos azuis, 
que se abriam no alto, entre o céu e eu, 
junto com o sorriso mais sincero.
a cena se repetia a cada visita,
exceto em um dia ou outro,
de humores mais arredios.
no mais, era muito fácil me apaixonar por você.
e a recordação é tão suave,
que a simples descrição 
tem um tom quase infantil

hoje, o nosso amor está em outro lugar
e isso não é um problema
mas essa que sou eu agora
com o peito roído de outras histórias
se acalenta na tua lembrança
no tempo daquela coragem
no tempo em que não existia o medo
de me deixar comover

[como você gosta de dizer por aí
vim te ver
só pra lembrar
quem sou eu]

Rainer Maria Rilke



sobre ironia 

não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para os objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que a beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade de seu ser. sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.

domingo, 5 de abril de 2015

Bill Bryson



uma breve história de quase tudo

além da sorte de ater-se, desde tempos imemoriais, a uma linha evolucionária privilegiada, você foi extremamente - ou melhor, milagrosamente - afortunado em sua ancestralidade pessoal. considere o fato de que, por 3,8 bilhões de anos, um período maior que a idade das montanhas, rios e oceanos da Terra, cada um dos seus ancestrais por parte de pai e mãe foi suficientemente atraente para encontrar um parceiro, suficientemente saudável para se reproduzir e suficientemente abençoado pelo destino e pelas circunstâncias para viver o tempo necessário para isso. nenhum dos seus ancestrais foi esmagado, devorado, afogado, morto de fome, encalhado, aprisionado, ferido ou desviado de qualquer outra maneira da missão de fornecer uma carga minúscula de material genético ao parceiro certo, no momento certo, a fim de perpetuar a única sequência possível de combinações hereditárias capaz de resultar - enfim, espantosamente e por um breve tempo - em você.

Mateus Gandara


Wislawa Szymborska



perspectiva 

se cruzaron como dos desconocidos,
sin gestos ni palabras,
ella de camino a la tienda
él de camino hacia el coche.
quizá entre la consternación,
o el desconcierto,
o la inadvertencia,
de que por un breve instante
se amaron para siempre.
no hay sin embargo garantía
de que fueran ellos.
quizá de lejos sí,
pero de cerca en absoluto.
los vi desde la ventana,
y quien mira desde arriba
se equivoca con mayor facilidad.
ella desapareció tras una puerta de cristal,
él subió al coche
y arrancó rápidamente.
así que no pasó nada
ni siquiera si pasó.
y yo sólo por un momento
segura de lo que vi,
intento ahora en un poema casual
convenceros a Vosotros, Lectores,
de que aquello fue triste.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Tzvetan Todorov



a beleza salvará o mundo

"Subitamente, no início da peça seguinte, produz-se algo de diverso. A pequena orquestra, cordas e flautas, ataca um concerto célebre, conhecido como La Notte. Mas a execução se dá com tal precisão, tal justeza que, no decorrer de alguns segundos, toda a sala se congela e retém a respiração. Todos somos suspensos pelos gestos lentos dos músicos e absorvemos os sons puros um a um, à medida que escapam dos instrumentos. Todos temos a consciência de participar, neste exato momento, de um evento excepcional, de uma experiência inesquecível. Minha pele se arrepia. Alguns instantes de silêncio se seguem ao fim do fragmento, antes da explosão de aplausos.
Em que consiste essa experiência? Vivaldi é m grande compositor, o Concerto Italiano um grupo excelente, mas não se trata apenas disso. Não sei analisar a música, contento-me em escutá-la ingenuamente, e imagino que a maior parte do público está em situação idêntica à minha. Aquilo que nos transportou pelo tempo em que durou a peça não diz respeito apenas à música. A perfeição da execução abriu as portas para uma experiência rara, porém familiar; ela nos conduziu a um lugar que ainda não sabemos nomear, mas que de saída, sentimos que nos é essencial. É um local de plenitude. Durante um momento, nossa perpétua agitação interior se suspendeu. Raramente, uma ação ou uma reação contêm em si sua justificação, uma e outra surgem para levar a um resultado, um sentido situado para além delas. Em momentos abençoados como este de que falo, não aspiramos mais a um além - já estamos nele. Ignoramos estar à procura desse estado; porém, quando chegamos a ele, reconhecemos sua importância vital: esse momento de arrebatamento corresponde a uma necessidade imperiosa. Algum tempo mais tarde, li num pequeno livro dedicado pelo mesmo Rinaldo Alessandrini a outro grande compositor: "Monteverdi dá a possibilidade àqueles que o escutam de tocar a beleza com o dedo". Sim, é isso. A beleza, seja de uma paisagem, a de um encontro ou de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais. É precisamente essa sensação de habitar plena e exclusivamente o presente que experimentávamos ao escutar La Notte."

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

17.



Escolhe-se um instante qualquer na história da humanidade. Nele, nasce um bebê.  Ao mesmo tempo em que um homem morre. Uma moça e um rapaz se conhecem. O encontro se dá como o grande poema de um poeta. No mesmo momento, em um outro lugar, um fiel ata explosivos em seu próprio corpo para defender um ideal. Uma avó segura, com ternura, a mão do neto que espera temerosamente a hora de tomar a injeção. Um presidente e sua equipe econômica discutem novas medidas para conter a inflação. Um senhor de feições cansadas capina o pequeno terreno de onde tira o seu sustento. Uma bióloga descobre uma nova espécie de inseto em uma floresta tropical. Um taxista bate o carro enquanto conversa com o jovem que acabou de desembarcar para estudar literatura no outro continente. A menina assustada pelo desconhecido que lhe bolinou nas escadas do prédio resolve morar embaixo da mesa. A mulher, portadora de deficiência física e mental, está deitada em frente à televisão conversando com as personagens da novela. Um jovem negro rouba a bolsa da senhora branca que caminha distraída com o seu smartphone. O tripulante de um navio pesqueiro se desespera com a tempestade em alto mar. A imigrante ilegal costura mais uma peça de roupa. O garoto, de apenas oito anos, se assusta com a irresistível atração que sente pelo melhor amigo. A prostituta passa o batom vermelho. O juiz condena o réu à prisão perpétua sem ter provas suficientes para esse veredicto. O adolescente, que passa as tardes dentro do quarto, se enfurece ao perceber que a fechadura quebrou e que agora está mesmo trancado. A chinesa ouve uma música em inglês, da qual não entende uma única palavra, enquanto pinta os cabelos de loiro. O gestor estuda os novos dados sobre o descarte de resíduos sólidos, mas não se lembra de retirar o lixo da cozinha. A menina de quatro anos chora com o pai ao perceber que um dia também irá morrer. Um grupo de jovens vê o pôr do sol e fuma um baseado em uma praia na Bahia. O rapaz, por não saber o que fazer da vida, decide estudar para concurso público. A modelo bela e magra marca uma cirurgia de lipoaspiração. A presidiária escreve uma carta para seu filho, que não vê há dois anos. Um anão compra roupas na seção infantil da loja de departamento. Um cientista tenta compreender a função de determinada proteína no desenvolvimento humano. Uma travesti esfaqueia impiedosamente o homem que, também impiedosamente, lhe humilhou. Um moleque faz seu primeiro gol de letra. Uma garota se apaixona pelo amigo gay que canta boleros. O padre celebra a missa em uma igreja cada vez mais vazia. O rapaz chora ao ouvir a canção do Milton Nascimento que ainda lembra a moça de olhos estrangeiros. O feirante frita um pastel. O médico retira o tumor do estômago de um ex-ministro. A gorda senhora observa a vida alheia pela janela. O casal de ex-namorados toma um café, após um ano sem se falar. Uma mãe conversa, descontraidamente, sobre sexo com a filha de 15 anos. A costureira faz a barra da calça do advogado. O homem abandonado não quer mais morrer. A criança brinca com o gato branco que nasceu com duas penugens pretas acima dos olhos, como se fossem grossas sobrancelhas. O rapaz sai para comprar cigarros e pensa sobre quais são os motivos que lhe fazem voltar.

Um observador atento pensa o quanto é surpreendente que tudo isso caiba no mesmo instante. E se assusta ao perceber que tudo isso não é nem a milésima parte de todas as possibilidades humanas que acontecem nesse mesmo instante único. A pergunta é: para qual dessas possibilidades ele deverá direcionar a sua curiosidade? Qual delas lhe ensinará mais sobre a condição humana? Conseguirá ele pensar melhor sobre o banal ou sobre o extraordinário? Sobre o próximo ou o distante? Diante de tantos acontecimentos tão singulares é difícil definir o que há de mais significativo para ser observado.