terça-feira, 28 de outubro de 2014

Jorge Luis Borges



the unending gift

um pintor nos prometeu um quadro.
agora, em new england, sei que morreu. senti,
como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho.
pensei no homem e no quadro perdidos.
(só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
uma coisa a mais, uma das vaidades ou
hábitos da casa; agora é ilimitada,
incessante, capaz de qualquer forma 
qualquer cor e a ninguém vinculada.
existe de algum modo. viverá e crescerá como
uma música e estará comigo até o fim.
obrigado, Jorge Larco.
(também os homens podem prometer,
porque na promessa há algo imortal.)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Andrei Tarkovsky



esculpindo o tempo

e estranho que, em arte, o rótulo de "artificial" seja aplicado ao que pertence inquestionavelmente à esfera da nossa percepção comum e cotidiana da realidade. isto se explica pelo fato de a vida ser muito mais poética do que a maneira como às vezes é representada pelos partidários mais convictos do naturalismo. muitas coisas, afinal, ficam em nossos corações e pensamentos como sugestões não concretizadas. em vez de tentar captar essas nuances, a maior parte dos filmes despretensiosos e "realistas" não só as ignora, como faz questão de usar imagens muito nítidas e explícitas, o que no máximo consegue tornar o filme forçado e artificial. no que me diz respeito, só admito um cinema que esteja o mais próximo possível da vida — ainda que, em certos momentos, sejamos incapazes de ver o quanto a vida é realmente bela.

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amo muito o cinema. eu mesmo ainda não sei muita coisa: se, por exemplo, meu trabalho corresponderá exatamente à concepção que tenho, ao sistema de hipóteses com que me defronto atualmente. além do mais, as tentações são muitas: a tentação dos lugares-comuns, das idéias artísticas dos outros. em geral, na verdade, é tão fácil rodar uma cena de modo requintado, de efeito, para arrancar aplausos...  mas basta voltar-se nessa direção e você está perdido. por meio do cinema, é necessário situar os problemas mais complexos do mundo moderno no nível dos grandes problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. é preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longo do qual deve mover-se a arte do cinema.

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a criação artística, afinal, não está sujeita a leis absolutas e válidas para todas as épocas; uma vez que está ligada ao objetivo mais geral do conhecimento do mundo, ela tem um número infinito de facetas e de vínculos que ligam o homem a sua atividade vital; e, mesmo que seja interminável o caminho que leva ao conhecimento, nenhum dos passos que aproximam o homem de uma compreensão plena do significado da sua existência pode ser desprezado como pequeno demais.

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quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida.

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o poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança, pois as suas impressões do mundo são imediatas, por mais profundas que sejam as suas ideias sobre o mundo. é claro que, ao falarmos de uma criança, também podemos dizer que ela é um filósofo; isso, porém, só pode ser afirmado num sentido bastante relativo. E a arte se esvai diante de conceitos filosóficos. o poeta não usa "descrições" do mundo; ele próprio participa da sua criação.

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o gênio, afinal, não se revela na perfeição absoluta de uma obra, mas sim na absoluta felicidade a si próprio, no compromisso com sua própria paixão. o anseio apaixonado do artista de encontrar a verdade, de conhecer o mundo e a si próprio dentro desse mundo, confere um significado especial até mesmo aos trechos um tanto obscuros de suas obras, ou, como s costuma dizer, 'menos bem sucedidos'.

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pois a criação artística não é apenas uma maneira de articular informações que existem objetivamente, cuja expressão requer apenas certa capacidade profissional. em última análise, ela é a própria forma de existência do artista, o seu único meio de expressão, exclusivamente seu. e fica claro, então que não se pode aplicar esta palavra flácida 'procura', a uma vitória sobre o silêncio, que exige um esforço incansável e sobre-humano.

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se lançarmos um olhar, mesmo que superficial, para o passado, para a vida que ficou pra trás, sem nem mesmo recordar seus momentos mais significativos, iremos nos surpreender continuamente com a singularidade dos acontecimentos de que participamos, com a individualidade absoluta dos personagens com os quais nos relacionamos. esta singularidade é como a nota dominante de cada momento da existência; em cada momento da vida, o princípio vital é único em si. o artista, portanto, tenta apreender esse princípio e torná-lo concreto, renovando-o cada vez; a cada nova tentativa, mesmo que em vão, ele tenta obter uma imagem completa da verdade da existência humana. a qualidade da beleza encontra-se na verdade da vida, que o artista assimila e dá a conhecer de acordo com sua visão pessoal.