sexta-feira, 29 de agosto de 2014

14.



a despedida

e naquele cenário tão habitual à história dos dois, se deu a despedida. ela, lhe fez uma surpresa, agiu como de costume, coisa que não fazia desde que haviam se separado. com aquele carinho que não era mais passageiro, o olhou timidamente e disse "é para você", em resposta ao livro que ele recolhia da mesa do café e estendia em sua direção.

a criança havia pedido que segurassem a porta do banheiro, não queria trancar, pois temia ficar presa mais uma vez. a moça se dispôs a segurá-la, desculpa para fugir de tudo o que era passado e teimava em flutuar naquele ambiente tão familiar. ela, em pé na porta do banheiro, com as mãos repousando desconfortavelmente sobre a saia estampada. aquela mesma saia que já tinha se tornado tão banal para ele, mas que agora, voltava a vestir a moça de maneira tão graciosa. ela, ora o observava, ora voltava a olhar para aquela foto em preto e branco que sempre lhe chamara atenção. ele, ainda na mesa, com a antiga camisa xadrez, da qual ela já gostou tanto, mas que agora lhe remetia a uma lembrança dolorosa. 

sentado como sempre, com as pernas cruzadas, passava as páginas lentamente. percebia que ela ainda sabia o que ele gostava de ler. descobriu a dedicatória. lembrou que ela nunca dava um livro sem escrever algumas palavras na contracapa. leu e a olhou com ternura. enxugou as lágrimas discretas que se derramaram no canto dos olhos. não esperava que ainda fosse possível se emocionar com a doçura daquela moça de olhos estrangeiros, cientes de tudo. pelo menos, não por agora. a distância que havia se imposto entre os dois no último ano, cessou por um átimo. mas logo cresceria para milhares de quilômetros.  

um sentimento próprio aos dois, se fez alheio às convenções de tempo, sem se saber localizar no passado ou no presente. era isso o que existia naquele momento. como algo de tanta densidade podia ocorrer enquanto as outras pessoas apenas tomavam seus cafés, trabalhavam, liam ou, simplesmente, conversavam sobre trivialidades? como podia acontecer em um dia em que nada escapava da rotina? será que apenas os dois percebiam, naquele instante, o mistério que pairava sobre as relações humanas? mais alguém era capaz de testemunhar o que viviam?   

as mágoas existem e impedem o que estaria por vir, tudo aquilo que um dia já haviam imaginado juntos. mas não apagam tudo de bonito que souberam construir. a vida tem dessas coisas: aquilo que há de mais belo também pode conter a tristeza mais brutal. mas não é preciso dar nome a tudo, nem encontrar uma taxonomia precisa para definir cada história que se tem. 

a criança saiu do banheiro. a moça, aliviada, sentiu que o tempo voltava a ter pressa. o estranho sentimento que os rondou era só a vida distraída que perdoava o passado e se colocava pronta para a renovação. a fala da criança ocupou o silêncio. ela requisitava o pai para algum programa divertido. se despediu feliz da moça, agradeceu a tarde singela, solicitando, ao seu modo infantil, que elas pudessem se encontrar novamente. a moça garantiu que sim. cada um foi para o seu lado, como se fosse mais um dia comum.e a moça já sabia, as despedidas reais eram assim: um ato cotidiano e banal, despido da intensidade do drama, como um bonito e melancólico entardecer.

e eles, enfim, puderam se separar. 

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