segunda-feira, 10 de novembro de 2014

16.


disparo

ontem, nosso beijo foi roubado
por um clic fotográfico
eu e você, no saguão de um teatro
a espera do show
de um velho artista de vanguarda
eu tomava uma coca-cola 
pela cintura, você me puxava pra perto

soube que me achou mais bonita do que de costume
(meu turbante xadrez repuxava-me os olhos)
saiba que gostei de você mais do que nunca
(terá percebido?)

apenas na ponta de um dos pés,
eu quase flutuava
e o enlace dos seus dedos nas minhas costas
era o que me segurava
no enquadramento do desconhecido
terá ele captado o momento decisivo?
e mesmo que nunca se veja o retrato
(se é que de fato o disparo foi feito)
me encanta imaginar que somos um nós tão fotogênico

Adélia Prado


com licença poética

quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
não sou tão feia que não possa casar,
acho o rio de janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
mas o que sinto escrevo. cumpro a sina.
inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
mulher é desdobrável. eu sou.

domingo, 2 de novembro de 2014

Carlos Drummond de Andrade



mundo grande

não, meu coração não é maior que o mundo.
é muito menor.
nele não cabem nem as minhas dores.
por isso gosto tanto de me contar.
por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

sim, meu coração é muito pequeno.
só agora vejo que nele não cabem os homens.
os homens estão cá fora, estão na rua.
a rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
mas também a rua não cabe todos os homens.
a rua é menor que o mundo.
o mundo é grande.

tu sabes como é grande o mundo.
conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

fecha os olhos e esquece.
escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
renascerão as cidades submersas?
os homens submersos – voltarão?

meu coração não sabe.
estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
nunca escutei voz de gente.
em verdade sou muito pobre.

outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

meus amigos foram às ilhas.
ilhas perdem o homem.
entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

então, meu coração também pode crescer.
entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– ó vida futura! Nós te criaremos.