domingo, 26 de junho de 2016

Milan Kundera



os testamentos traídos

Ah, é tão fácil desobedecer a um morto. Se, apesar disso, algumas vezes nos submetemos à sua vontade, não é por medo, por obrigação, é porque o amamos e nos recusamos a acreditar que está morto. Se um velho camponês pediu ao seu filho para não cortar a velha pereira diante da janela, a pereira não será cortada enquanto o filho lembrar de seu pai com amor.

Isto não tem muita coisa a ver com a fé religiosa na vida eterna da alma. Simplesmente, um morto que amo nunca estará morto para mim. Não posso nem mesmo dizer: eu o amei; não, eu o amo. E se me recuso a falar de meu amor por ele no tempo passado, isto quer dizer que aquele que está morto existe. É aí talvez que se encontra a dimensão religiosa do homem. Realmente, a obediência à última vontade é misteriosa: ela ultrapassa toda a reflexão prática e racional: o velho camponês nunca saberá, em seu túmulo, se a pereira foi ou não cortada; no entanto, é impossível para o filho que o ama não obedecer à sua vontade.

Em outros tempos, fiquei comovido (ainda fico) com o fim do romance de Faulkner, As palmeira selvagens. A mulher morre depois de um aborto mal-sucedido, o homem fica na prisão, condenado a dez anos; entregam-lhe em sua cela um comprimido branco, veneno; mas ele afasta depressa a ideia de suicídio, pois sua única maneira de prolongar a vida da mulher amada é guardá-la em sua lembrança.

"... Quando ela deixou de existir, a metade da lembrança deixou igualmente de existir; se eu deixo de existir, então toda a lembrança também deixará de existir. Sim, pensou, entre a tristeza e o nada, é a tristeza que escolho."

Mais tarde, ao escrever O livro do riso e do esquecimento, mergulhei no personagem de Tamina, que perdeu seu marido e tenta desesperadamente encontrar e reunir as lembranças dispersas para reconstruir um ser desaparecido, um passado encerrado; foi então que comecei a compreender que, numa lembrança, não se encontra a presença do morto; as lembranças são apenas a confirmação de sua ausência; nas lembranças, o morto não é senão um passado que empalidece, que se afasta, inacessível.

No entanto, se é impossível para mim considerar morto o ser que amo, como irá se manifestar sua presença?

Em sua vontade, que conheço e à qual continuarei fiel. Penso na velha pereira que continuará diante da janela enquanto o filho do camponês estiver vivo.