domingo, 21 de julho de 2019

23.


Acordar todo dia às 6h, tomar um café apressado, seguir para o trabalho, enfrentando o ainda leve congestionamento de Brasília, se comparado ao das outras capitais do Brasil. Ler as notícias, resolver questões burocráticas a pedido do chefe, gastar um tempo na internet, calcular se o dinheiro vai dar até o fim do mês. Almoçar correndo em um self-service barato. Passar mais uma tarde em frente ao computador. O leve congestionamento se repete na volta e você chega em casa cansado de um dia como outro qualquer. Conversa trivialidades com o cônjuge. Não dá muita atenção para o que as crianças falam. Lava a louça do jantar e senta para ver um pouco de televisão antes de dormir. É mais ou menos assim a rotina da maior parte das pessoas. Claro que as lacunas se completam com os mais diversos interesses e obrigações, com histórias de vida bem distintas. O que pretendo dizer é que, na maior parte do tempo, não damos muita atenção para o que acontece ao nosso redor. Imersos em nossas atividades cotidianas, dificilmente dispensamos um olhar mais cuidadoso para o que nos cerca. E quando digo isso, não me refiro somente ao hábito de manter momentos contemplativos, mas sim, ao ato de realmente fazer algum esforço de compreensão mais profundo da realidade, de conseguir desnaturalizar o nosso dia a dia e perceber que mesmo os atos mais banais refletem as estruturas sociais a culturais em que estamos imersos.

É preciso entender que o cotidiano não é um refúgio da história, mas sim parte
integrante dela. É no passar lento e gradual dos dias que conseguimos realmente visualizar as consequências dos grandes acontecimentos para a humanidade, caracterizar uma época e entender um pouco mais dos homens e mulheres que viveram (ou vivem) nela. Afinal, se formos parar para pensar, a maior parte de nossas vidas são compostas por atividades comuns. 

Adélia Prado



A Criatura

Quero ver Jonathan,
Aqui ou onde mora
Exilado de mim.
Está meio chuvoso e é domingo,
feito um domingo antigo,
quando Ormírio chegou com Antônia,
sua filha de criação,
e me deu um cacho de uvas.
Da mesma natureza é a saudade que sinto
por aquele domingo e por Jonathan.
Como Antônia era tola eu era feliz,
o eixo da terra girava devagar,
eu cantava
a propósito de tudo,
a música de que mais gostava.
Quando me apaixonei por Jonathan,
escrevia seu nome pela casa,
meu pai dizia: ‘o que é isso?’
é o nome de um príncipe, eu falava,
Pronuncia-se Narratanói e está nas
mil e uma noites…
Meu pai, plebeu
a quem certas palavras subjugavam,
orgulhava-se de mim
que lhe dava poder sobre os signos migrados.
Oh, Jonathan, descubro que te amo
desde o tempo da guerra,
quando os aliados batiam os alemães.
Vovô dizia usaliados
e até mamãe, imagine!
E principalmente eu:
‘usaliados’ vão ganhar a guerra’,
sabendo por divina inspiração:
‘o poder é de quem detém a palavra’.
Poder que ia usar contra você,
que teria minha mãe usado contra mim:
‘você é da classe operária,
ele é muito bonito,
vai te deixar sozinha!’
Não deixou minha mãe, como não me deixa
apesar dos pesares,
esta vocação para a alegria perfeita.
Vê, são passadas décadas
e é a mesma em mim
a prontidão para a chuva,
as goiabas verdes,
para o sol que ateia nos telhados
as labaredas brancas do meio-dia.
É como se estivésseis aqui
com meu pai, meu avô
Ormírio e o cacho de uvas,
como quando entoei impropriamente,
à véspera de um Natal o Tantum Ergo.
Que grande cortesã eu me ensaiava,
porque era uma orgia
aquela felicidade sobre nadas,
era tudo tão pobre.
Eu já amava Jonathan,
porque Jonathan é isto,
fato poético desde sempre gerado,
matéria de sonho, sonho,
hora em que tudo mais desce à desimportância.
Agora que me descido à mística,
escrevo sob seu retrato:
‘Jesus, José, Javé, Jonathan, Jonathan,
a flor mais diminuta é meu juiz.
Me deixem no deserto resgatada,
pedra que dentro é pedra,
sobre pedra pousada’.
Rimo por boniteza,
não é triste o que sinto.
‘A supliciada’ podíeis chamar a tais versos,
no entanto, confirmo, estou feliz,
feliz para o desperdício
do que busquei amealhar
e estava certa,
o que o tempo não rói.
Um mel derrama-se,
uma ave amorosa me alimenta.
Negro céu com relâmpagos
e esta doçura que não tem repouso.
São feitos para mim estes legumes,
mais que as flores são feitos para mim
que os converto no ventre em ouro simbólico.
Nada há mais parecido com o que sou
a não ser outro homem e outro mais
e mais outro homem.
A visão de um recém-nascido me transporta.
Experimento dizer: ‘dentro da terra
sobre os leitos de areia os lençóis d’água’;
é como ferir o peito com uma lança
estremeço de amor pelas torrentes,
como de amor por Jonathan.
Os peixes gostam de mim, os fetos.
Antes que o façam eu abraço os homens,
eu os desarmo,
como a abelha em seu afinco
trabalho para que entendam:
a vida é tão bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Os espíritos imundos confessavam o Cristo,
se enfiavam nos porcos confessando,
essa alegria nova me confessa,
a mesma, a antiga,
a de quando ganhei as uvas e chovia
e gostava de Antônia
aquela menina tola.
‘A ira bordeja como um peixe mau’
É só um verso bonito.
Não há como voltar deste país:
o homem à  janela canta
– sem ter costume – a melodiazinha.
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guimarães Rosa


grande sertão: veredas 

"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!"

"Moço: toda saudade é uma espécie de velhice."

"Estremeço. Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!"

"Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

"No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso."

"O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente - 'Diadorim, meu amor...' Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vegornha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas - como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só pra mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com a minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim - que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar as coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas - de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava."