terça-feira, 7 de julho de 2015

Tjiske Jansen



para os anos dele

sei qual é cor em que prefere calçar-se.
sei qual é a cor em que prefere vestir-se.

porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.

portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir,
qual é a tua cor preferida para acordar?

a cor dos teus olhos, respondeu-me. a cor da tua pele.
não fui à procura. não necessito de andar à procura para saber que
não existe nenhuma loja que venda edredões nessas cores.
não há outra solução a não ser dormir
com ele para sempre.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Adélia Prado



ensinamento 

minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
não é.
a coisa mais fina do mundo é o sentimento.
aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“coitado, até essa hora no serviço pesado”.
arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
não me falou em amor.
essa palavra de luxo.

Adélia Prado


para o zé 

eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
divago, quando o que quero é só dizer
te amo. teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. esmero. pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
aprendo. te aprendo, homem. o que a memória ama
fica eterno. te amo com a memória, imperecível.
te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: deus é amor. você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

domingo, 5 de julho de 2015

Norbert Elias



Que ato do destino terá promovido o desenvolvimento das estruturas biológicas que facultaram aos descendentes humanos dos animais conquistarem o autodistanciamento necessário para aprenderem a falar e a dizer "eu" a respeito de si mesmos? E mais, que ato do destino terá permitido que os rostos relativamente impassíveis de nossos antepassados animais se transformassem nos rostos extraordinariamente móveis e individualizáveis que figuram entre os traços biológicos singulares do homem? 
Não conhecemos esses atos do destino. Não sabemos que circunstâncias peculiares, ao longo de milhões de anos, levaram os seres humanos a serem, ao que saibamos, a única espécie de organismo a adquirir um equipamento biológico que tornou não apenas possível, mas necessário, poder produzir e compreender, como seu principal meio de comunicação, configurações sonoras que diferiam de grupo para grupo. Tampouco sabemos até agora que acontecimentos repetitivos, durante milhões de anos, terão levado aos seres humanos a serem biologicamente dotados de uma fisionomia altamente individualizável, com uma musculatura facial dúctil, capaz de assumir marcas diferentes conforme a experiência individual. Mas os eventos dessa evolução são claramente compreendidos. Os seres humanos são os únicos organismos até hoje conhecidos a usarem um meio de comunicação primordial que é específico da sociedade e não específico da espécie, e são também a única espécie, dentre as que conhecemos, dotada de uma parte do corpo tão apta a trazer uma  marca individual diferente que, por meio dela, centenas de indivíduos são capazes, por longos períodos, e muitas vezes pela vida inteira, de reconhecerem uns aos outros como tais, como indivíduos diferentes.