quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

17.



Escolhe-se um instante qualquer na história da humanidade. Nele, nasce um bebê.  Ao mesmo tempo em que um homem morre. Uma moça e um rapaz se conhecem. O encontro se dá como o grande poema de um poeta. No mesmo momento, em um outro lugar, um fiel ata explosivos em seu próprio corpo para defender um ideal. Uma avó segura, com ternura, a mão do neto que espera temerosamente a hora de tomar a injeção. Um presidente e sua equipe econômica discutem novas medidas para conter a inflação. Um senhor de feições cansadas capina o pequeno terreno de onde tira o seu sustento. Uma bióloga descobre uma nova espécie de inseto em uma floresta tropical. Um taxista bate o carro enquanto conversa com o jovem que acabou de desembarcar para estudar literatura no outro continente. A menina assustada pelo desconhecido que lhe bolinou nas escadas do prédio resolve morar embaixo da mesa. A mulher, portadora de deficiência física e mental, está deitada em frente à televisão conversando com as personagens da novela. Um jovem negro rouba a bolsa da senhora branca que caminha distraída com o seu smartphone. O tripulante de um navio pesqueiro se desespera com a tempestade em alto mar. A imigrante ilegal costura mais uma peça de roupa. O garoto, de apenas oito anos, se assusta com a irresistível atração que sente pelo melhor amigo. A prostituta passa o batom vermelho. O juiz condena o réu à prisão perpétua sem ter provas suficientes para esse veredicto. O adolescente, que passa as tardes dentro do quarto, se enfurece ao perceber que a fechadura quebrou e que agora está mesmo trancado. A chinesa ouve uma música em inglês, da qual não entende uma única palavra, enquanto pinta os cabelos de loiro. O gestor estuda os novos dados sobre o descarte de resíduos sólidos, mas não se lembra de retirar o lixo da cozinha. A menina de quatro anos chora com o pai ao perceber que um dia também irá morrer. Um grupo de jovens vê o pôr do sol e fuma um baseado em uma praia na Bahia. O rapaz, por não saber o que fazer da vida, decide estudar para concurso público. A modelo bela e magra marca uma cirurgia de lipoaspiração. A presidiária escreve uma carta para seu filho, que não vê há dois anos. Um anão compra roupas na seção infantil da loja de departamento. Um cientista tenta compreender a função de determinada proteína no desenvolvimento humano. Uma travesti esfaqueia impiedosamente o homem que, também impiedosamente, lhe humilhou. Um moleque faz seu primeiro gol de letra. Uma garota se apaixona pelo amigo gay que canta boleros. O padre celebra a missa em uma igreja cada vez mais vazia. O rapaz chora ao ouvir a canção do Milton Nascimento que ainda lembra a moça de olhos estrangeiros. O feirante frita um pastel. O médico retira o tumor do estômago de um ex-ministro. A gorda senhora observa a vida alheia pela janela. O casal de ex-namorados toma um café, após um ano sem se falar. Uma mãe conversa, descontraidamente, sobre sexo com a filha de 15 anos. A costureira faz a barra da calça do advogado. O homem abandonado não quer mais morrer. A criança brinca com o gato branco que nasceu com duas penugens pretas acima dos olhos, como se fossem grossas sobrancelhas. O rapaz sai para comprar cigarros e pensa sobre quais são os motivos que lhe fazem voltar.

Um observador atento pensa o quanto é surpreendente que tudo isso caiba no mesmo instante. E se assusta ao perceber que tudo isso não é nem a milésima parte de todas as possibilidades humanas que acontecem nesse mesmo instante único. A pergunta é: para qual dessas possibilidades ele deverá direcionar a sua curiosidade? Qual delas lhe ensinará mais sobre a condição humana? Conseguirá ele pensar melhor sobre o banal ou sobre o extraordinário? Sobre o próximo ou o distante? Diante de tantos acontecimentos tão singulares é difícil definir o que há de mais significativo para ser observado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário