domingo, 5 de julho de 2015

Norbert Elias



Que ato do destino terá promovido o desenvolvimento das estruturas biológicas que facultaram aos descendentes humanos dos animais conquistarem o autodistanciamento necessário para aprenderem a falar e a dizer "eu" a respeito de si mesmos? E mais, que ato do destino terá permitido que os rostos relativamente impassíveis de nossos antepassados animais se transformassem nos rostos extraordinariamente móveis e individualizáveis que figuram entre os traços biológicos singulares do homem? 
Não conhecemos esses atos do destino. Não sabemos que circunstâncias peculiares, ao longo de milhões de anos, levaram os seres humanos a serem, ao que saibamos, a única espécie de organismo a adquirir um equipamento biológico que tornou não apenas possível, mas necessário, poder produzir e compreender, como seu principal meio de comunicação, configurações sonoras que diferiam de grupo para grupo. Tampouco sabemos até agora que acontecimentos repetitivos, durante milhões de anos, terão levado aos seres humanos a serem biologicamente dotados de uma fisionomia altamente individualizável, com uma musculatura facial dúctil, capaz de assumir marcas diferentes conforme a experiência individual. Mas os eventos dessa evolução são claramente compreendidos. Os seres humanos são os únicos organismos até hoje conhecidos a usarem um meio de comunicação primordial que é específico da sociedade e não específico da espécie, e são também a única espécie, dentre as que conhecemos, dotada de uma parte do corpo tão apta a trazer uma  marca individual diferente que, por meio dela, centenas de indivíduos são capazes, por longos períodos, e muitas vezes pela vida inteira, de reconhecerem uns aos outros como tais, como indivíduos diferentes.

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