quinta-feira, 14 de maio de 2015

Jorge Luis Borges



funes, o memorioso

"Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o podemos esquecer, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; incomodava-o que o cachorro das três horas e catorze minutos (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cachorro das três e quinze (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez. Relata Swift que o imperador de Lilliput podia discernir o movimento do ponteiro de minutos; Funes discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, do cansaço. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso. A Babilônia, Londres e Nova York pesaram com feroz esplendor sobre a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas urgentes avenidas, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão inexaurível como a que a noite e dia convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre arrabalde sul-americano. Para ele, dormir era muito difícil. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, ficava imaginando cada greta e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (Repito que o menos importante em suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico.) Para o leste, num trecho de quarteirão incompleto, havia casas novas, desconhecidas. Funes imaginava-as pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção voltava o rosto para dormir. Também costumava se imaginar no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente. 

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

A tímida claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi a cara da voz que havia falado a noite toda. Ireneo tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada uma de minhas atitudes) perduraria em sua implacável memória; tolheu-me o temor de multiplicar gestos inúteis. 

Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar."

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