sábado, 14 de novembro de 2015

João Moreira Salles



a dificuldade do documentário 

"O cinema é a única arma que possuo para mostrar ao outro como eu o vejo. (Jean Rouch)

De modo geral, desde Flaherty, podemos dizer que todo documentário encerra duas naturezas distintas. De um lado, ele é o registro de algo que aconteceu no mundo; de outro lado, é narrativa, uma retórica construída a partir do que foi registrado. Nenhum filme se contenta em ser apenas registro. Tem sempre também a ambição de ser uma história bem contada. A camada retórica que se sobrepõe ao material bruto, esse modo de contar o material, essa oscilação entre documento e representação, constituem o verdadeiro problema do documentário. Nossa identidade está intimamente ligada ao convívio complicado dessas duas naturezas.

É útil aqui fazer uma distinção entre compreensão não-ficcional e artefato não-ficcional. A compreensão não-ficcional nos permite perceber o que há de indicial em toda imagem, até mesmo naquelas que pertencem ao campo da ficção. Já o artefato não-ficcional — e o documentário certamente é um deles — independe dos usos individuais que se façam dele. Ele é uma convenção, um fenômeno social. É possível que, numa aula a respeito das técnicas vocais de atrizes americanas durante os anos de ouro do musical americano, O mágico de Oz possa ser analisado como documentário, mas seria um erro conceitual classificá-lo assim. Ele é, e será sempre, um filme de ficção no qual as pessoas cantam. É a história do cinema que diz assim. Por sua vez, Nanook do Norte nunca deixará de ser um documentário.

Uma pessoa filmada por mim é um conjunto de imagens partidas: primeiro, a pessoa vista, ao alcance da mão, do olfato, da audição; um rosto percebido na escuridão do visor; uma lembrança, às vezes fugidia, às vezes de uma clareza lapidar; um conjunto de fotogramas numa ilha de edição; algumas fotografias; e finalmente a figura se movendo na tela do cinema. (David MacDougal)

MacDougal lembra que, uma vez pronto, o filme representa, para o espectador, tudo; já para o diretor, representa muito pouco. Para ele — que teve o personagem diante de si, que respirou o mesmo ar da sala em que se encontraram; que sentiu com ele frio, se estava frio, ou calor, se estava calor; que riu, se interessou ou se aborreceu com o que foi dito —, o filme é uma redução da complexidade, uma diminuição da experiência. Ou, para sermos mais otimistas, é, no mínimo, a construção de uma outra experiência. Nela, a pessoa, cada vez mais distante, cede lugar a algo próximo, o personagem. Ao longo desse processo em que uma pessoa é transformada em personagem, inevitavelmente dados vão sendo perdidos. A falta do aperto sincero de mão quando chegamos sonega a informação de que o personagem foi gentil, e assim também a água oferecida, ou o café que foi buscar na cozinha. Todo diretor, quando mostra seu filme na televisão de casa, tem necessidade de falar: “Logo depois desse corte ele disse...”; “Isso foi logo depois que chegamos”; “Nessa hora passou um avião e tivemos que interromper”; “Aqui ele começou a perceber que precisávamos terminar”; “Ela nos recebeu assim mesmo, toda arrumada, pintou-se...”. 

Nós sabemos que a pessoa só poderá se definir durante os poucos momentos em que a câmera estiver ligada. Ela não sabe.

Depois de algumas semanas na ilha de edição, o diretor se torna refém do filme. A compreensão do tema impõe suas prioridades e a estrutura conduz a narrativa por caminhos determinados, nos quais certos desvios se revelam impraticáveis. É com pena que o documentarista abandona todos esses outros filmes hipotéticos. São possibilidades não realizadas, derrotadas pela lógica do filme e por exigências da estrutura. O paradoxo é este: potencialmente, os personagens são muitos, mas a pessoa filmada é uma só. Aqui, precisamente, reside, para mim, a verdadeira questão do documentário. Sua natureza não é estética, nem epistemológica. É ética." 

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