a dificuldade do documentário
"O cinema é a única arma que possuo para mostrar ao
outro como eu o vejo. (Jean Rouch)
De modo geral, desde Flaherty, podemos dizer que todo
documentário encerra duas naturezas distintas. De um lado, ele é o
registro de algo que aconteceu no mundo; de outro lado, é narrativa,
uma retórica construída a partir do que foi registrado. Nenhum
filme se contenta em ser apenas registro. Tem sempre também a
ambição de ser uma história bem contada. A camada retórica que se
sobrepõe ao material bruto, esse modo de contar o material, essa
oscilação entre documento e representação, constituem o
verdadeiro problema do documentário. Nossa identidade está
intimamente ligada ao convívio complicado dessas duas naturezas.
É útil aqui fazer uma distinção entre compreensão
não-ficcional e artefato não-ficcional. A compreensão não-ficcional
nos permite perceber o que há de indicial em toda imagem, até mesmo
naquelas que pertencem ao campo da ficção. Já o artefato
não-ficcional — e o documentário certamente é um deles —
independe dos usos individuais que se façam dele. Ele é uma
convenção, um fenômeno social. É possível que, numa aula a
respeito das técnicas vocais de atrizes americanas durante os anos
de ouro do musical americano, O mágico de Oz possa ser analisado
como documentário, mas seria um erro conceitual classificá-lo
assim. Ele é, e será sempre, um filme de ficção no qual as
pessoas cantam. É a história do cinema que diz assim. Por sua vez,
Nanook do Norte nunca deixará de ser um documentário.
Uma pessoa filmada por mim é um conjunto de imagens
partidas: primeiro, a pessoa vista, ao alcance da mão, do olfato, da
audição; um rosto percebido na escuridão do visor; uma lembrança,
às vezes fugidia, às vezes de uma clareza lapidar; um conjunto de
fotogramas numa ilha de edição; algumas fotografias; e finalmente a
figura se movendo na tela do cinema. (David MacDougal)
MacDougal lembra que, uma vez pronto, o filme
representa, para o espectador, tudo; já para o diretor, representa
muito pouco. Para ele — que teve o personagem diante de si, que
respirou o mesmo ar da sala em que se encontraram; que sentiu com ele
frio, se estava frio, ou calor, se estava calor; que riu, se
interessou ou se aborreceu com o que foi dito —, o filme é uma
redução da complexidade, uma diminuição da experiência. Ou, para
sermos mais otimistas, é, no mínimo, a construção de uma outra
experiência. Nela, a pessoa, cada vez mais distante, cede lugar a
algo próximo, o personagem. Ao longo desse processo em que uma
pessoa é transformada em personagem, inevitavelmente dados vão
sendo perdidos. A falta do aperto sincero de mão quando chegamos
sonega a informação de que o personagem foi gentil, e assim também
a água oferecida, ou o café que foi buscar na cozinha. Todo diretor, quando mostra seu filme na televisão de casa, tem
necessidade de falar: “Logo depois desse corte ele disse...”;
“Isso foi logo depois que chegamos”; “Nessa hora passou um
avião e tivemos que interromper”; “Aqui ele começou a perceber
que precisávamos terminar”; “Ela nos recebeu assim mesmo, toda
arrumada, pintou-se...”.
Nós sabemos que a pessoa só poderá se definir durante os poucos momentos em que a câmera estiver ligada. Ela não sabe.
Nós sabemos que a pessoa só poderá se definir durante os poucos momentos em que a câmera estiver ligada. Ela não sabe.
Depois de algumas semanas na ilha de edição, o diretor
se torna refém do filme. A compreensão do tema impõe suas
prioridades e a estrutura conduz a narrativa por caminhos
determinados, nos quais certos desvios se revelam impraticáveis. É
com pena que o documentarista abandona todos esses outros filmes
hipotéticos. São possibilidades não realizadas, derrotadas pela
lógica do filme e por exigências da estrutura. O paradoxo é este:
potencialmente, os personagens são muitos, mas a pessoa filmada é
uma só. Aqui, precisamente, reside, para mim, a verdadeira questão
do documentário. Sua natureza não é estética, nem epistemológica.
É ética."
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