domingo, 21 de julho de 2019

Adélia Prado



A Criatura

Quero ver Jonathan,
Aqui ou onde mora
Exilado de mim.
Está meio chuvoso e é domingo,
feito um domingo antigo,
quando Ormírio chegou com Antônia,
sua filha de criação,
e me deu um cacho de uvas.
Da mesma natureza é a saudade que sinto
por aquele domingo e por Jonathan.
Como Antônia era tola eu era feliz,
o eixo da terra girava devagar,
eu cantava
a propósito de tudo,
a música de que mais gostava.
Quando me apaixonei por Jonathan,
escrevia seu nome pela casa,
meu pai dizia: ‘o que é isso?’
é o nome de um príncipe, eu falava,
Pronuncia-se Narratanói e está nas
mil e uma noites…
Meu pai, plebeu
a quem certas palavras subjugavam,
orgulhava-se de mim
que lhe dava poder sobre os signos migrados.
Oh, Jonathan, descubro que te amo
desde o tempo da guerra,
quando os aliados batiam os alemães.
Vovô dizia usaliados
e até mamãe, imagine!
E principalmente eu:
‘usaliados’ vão ganhar a guerra’,
sabendo por divina inspiração:
‘o poder é de quem detém a palavra’.
Poder que ia usar contra você,
que teria minha mãe usado contra mim:
‘você é da classe operária,
ele é muito bonito,
vai te deixar sozinha!’
Não deixou minha mãe, como não me deixa
apesar dos pesares,
esta vocação para a alegria perfeita.
Vê, são passadas décadas
e é a mesma em mim
a prontidão para a chuva,
as goiabas verdes,
para o sol que ateia nos telhados
as labaredas brancas do meio-dia.
É como se estivésseis aqui
com meu pai, meu avô
Ormírio e o cacho de uvas,
como quando entoei impropriamente,
à véspera de um Natal o Tantum Ergo.
Que grande cortesã eu me ensaiava,
porque era uma orgia
aquela felicidade sobre nadas,
era tudo tão pobre.
Eu já amava Jonathan,
porque Jonathan é isto,
fato poético desde sempre gerado,
matéria de sonho, sonho,
hora em que tudo mais desce à desimportância.
Agora que me descido à mística,
escrevo sob seu retrato:
‘Jesus, José, Javé, Jonathan, Jonathan,
a flor mais diminuta é meu juiz.
Me deixem no deserto resgatada,
pedra que dentro é pedra,
sobre pedra pousada’.
Rimo por boniteza,
não é triste o que sinto.
‘A supliciada’ podíeis chamar a tais versos,
no entanto, confirmo, estou feliz,
feliz para o desperdício
do que busquei amealhar
e estava certa,
o que o tempo não rói.
Um mel derrama-se,
uma ave amorosa me alimenta.
Negro céu com relâmpagos
e esta doçura que não tem repouso.
São feitos para mim estes legumes,
mais que as flores são feitos para mim
que os converto no ventre em ouro simbólico.
Nada há mais parecido com o que sou
a não ser outro homem e outro mais
e mais outro homem.
A visão de um recém-nascido me transporta.
Experimento dizer: ‘dentro da terra
sobre os leitos de areia os lençóis d’água’;
é como ferir o peito com uma lança
estremeço de amor pelas torrentes,
como de amor por Jonathan.
Os peixes gostam de mim, os fetos.
Antes que o façam eu abraço os homens,
eu os desarmo,
como a abelha em seu afinco
trabalho para que entendam:
a vida é tão bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Os espíritos imundos confessavam o Cristo,
se enfiavam nos porcos confessando,
essa alegria nova me confessa,
a mesma, a antiga,
a de quando ganhei as uvas e chovia
e gostava de Antônia
aquela menina tola.
‘A ira bordeja como um peixe mau’
É só um verso bonito.
Não há como voltar deste país:
o homem à  janela canta
– sem ter costume – a melodiazinha.
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome.

Nenhum comentário:

Postar um comentário