sexta-feira, 10 de maio de 2013

4.




um palpite sobre paulo moura

Talvez Paulo Moura soubesse que aquela seria a sua última roda de choro. Não digo isso por achar que todos nós possamos sentir quando a morte se aproxima. Muita gente diz que, não só a pressentimos, como podemos ver o tal filme de nossas vidas nos últimos instantes. Pode ser que isso aconteça para alguns, mas existem formas tão diversas de morrer, que acho ingênuo estender essa condição à humanidade inteira. Acredito que, muitas vezes, o fim chega sem avisar. E o alguém se vai sem nem mesmo perceber o que foi.
Mas esse não era o caso do instrumentista. Ele já tinha 77 anos e estava doente há algum tempo. Creio que nessas condições, o ato de pensar sobre a morte acomete mesmo os mais resistentes a esse assunto. Em algum momento, é difícil não cogitar, ainda que em um rápido lampejo, que aquela deva ser a última vez a se fazer determinada coisa ou a ver certa pessoa. Não considero, no entanto, essas suposições como algo pessimista. A serenidade com que permitimos que essas possibilidades de pequenas e inevitáveis perdas adentrem o nosso cotidiano pode ser importante para se aprender a morrer.
Paulo Moura me parecia sereno naquele dia. Eduardo Escorel, o cineasta que registrou a última roda de choro do músico, relatou, durante um debate no Festival É Tudo Verdade, que a clarineta de Moura nem estava montada. Mas ele insistiu para que aprontassem o instrumento. Empunhou a sua habitual clarineta de acrílico e acompanhou a canção Doce de Coco, de Jacob do Bandolim. O antigo virtuosismo deu lugar a um fôlego escasso, a mãos trêmulas. Todo mundo podia ver que ele estava velho e doente. Mesmo assim ele quis tocar. E tocou lindamente. Dois dias depois, faleceu.
O registro dessa despedida, no entanto, não pôde fazer parte do documentário que Escorel produziu sobre o clarinetista. Algumas das pessoas que estiveram presentes naquele momento não autorizaram o uso das imagens. Segundo o cineasta, elas acreditavam que, de alguma maneira, aquela última aparição poderia manchar a reputação de Moura. Na minha cabeça, isso nada mais é do que um reflexo do quanto estamos despreparados para lidar com o envelhecimento e com a morte. Em que momento, uma cena de uma beleza tão evidente se tornou um sinônimo de indignidade?
Envelhecer tomou um significado pejorativo, pois é o caminho natural que leva à morte. E morte, atualmente, carrega um sentido tão ruim, tão temeroso, que preferimos passar a vida inteira sem nem pensar sobre isso. Mas nos esquecemos que aprender a morrer é condição para que aprendamos a viver bem. A capacidade de lidar com a certeza de que tudo terá um fim pode, gradualmente, nos ensinar a concentrar nossa atenção naquilo que realmente importa para uma vida melhor. Para Moura, o que importava era a música.
Desde que li o livro “A morte de Ivan Ilitch” , de Tolstói, foi difícil parar de pensar sobre a morte. Mas, admito que era de uma maneira um tanto receosa. O russo retrata a morte de um burguês de maneira tão crua e dolorida, porém, ao mesmo tempo tão real, que me ficou marcada a ideia de que a despedida da vida seria um misto de amargura e arrependimentos. Em meio a isso, a cena de Paulo Moura me vem como um alento. Aquele sorriso no final da canção, o beijo na clarineta, me fazem ter o palpite de que ele ficou satisfeito com a sua despedida. E com a vida que teve.

A cena da despedida de Paulo Moura: http://www.youtube.com/watch?v=kjQUQJrBapU

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